UNIÃO ESTÁVEL

No Código Civil, a União Estável está disciplinada nos seus artigos 1.723 a 1.727. O Direito que se organizou nos países ocidentais baseado no Direito Romano-Germânico e no Direito Canônico sempre privilegiou o casamento, ao qual era dada a prerrogativa exclusiva de formar a família, célula básica da sociedade.  

No entanto, vez que o direito não tem meios para conduzir a vida privada das pessoas – nem deve ter! – sempre houve outras formas de vínculos conjugais, que não apenas o originado do matrimônio.

Durante muito tempo, toda relação sexual mantida fora do casamento foi condenada com veemência. Na verdade, o dogma religioso do casamento virgem ainda persiste, e, em algumas sociedades orientais, a prática de relação sexual antes do casamento constitui crime, por vezes punido com a morte. 

Ocorre que, com o desenvolvimento teórico do novo modelo de Estado, percebeu-se que não cabia ao Estado intervir tão a fundo na vida privada das pessoas. Uma sociedade que pretende garantir a dignidade e a liberdade não pode determinar de que forma as pessoas deverão constituir suas famílias. 

No Brasil, apesar de o Código civil de 1916 somente reconhecer à família formada pelo casamento, um número assustador de ações pleiteando direitos em razão do rompimento de um vínculo conjugal não oriundo do casamento levou a doutrina e a jurisprudência à inescapável conclusão de que o Direito não podia fechar os olhos para a realidade social. 

Pouco a pouco, começou-se a conceder à mulher – sempre a prejudicada, nesses casos – o direito de exigir do “amásio” indenização pelos serviços que lhe prestava durante a constância da união. Posteriormente, passou-se a enxergar nos relacionamentos não matrimoniais – chamadas de concubinato ou mancebia – uma sociedade de fato, o que gerava direitos obrigacionais. 

Em 1964, o Supremo Tribunal Federal pacificou esse entendimento, por meio da Súmula 380: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicia, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. 

Os direitos de família e os direitos sucessórios, todavia, permaneceram exclusivos dos cônjuges e dos chamados “filhos legítimos” – os nascidos do casamento.  Aliás, fazia-se questão de esclarece que os direitos patrimoniais reconhecidos à concubina não derivavam do concubinato – considerado ilegítimo e incapaz de gear direitos – mas da prestação de serviços domésticos ou do fato de ter a mulher contribuído efetivamente para a aquisição do patrimônio do concubino. 

Vejam-se, para ilustrar a carga do preconceito que pesava sobre a matéria, tr~es julgados coletados por Silvio Rodrigues no estudo que desenvolveu sobre o tema:

“Embora a mancebia constitua união ilegítima, nada impede reclame qualquer deles, do outro, a retribuição, por serviços estranhos à relação concubinária.” ( RT 264/427)

“´[..] é justa a reparação dada à mulher, que não pede salários como amásia, mas sim pelos serviços prestados” (RT 181/290)

“Tem direito à remuneração por serviços domésticos ou á meação dos bens adquiridos com esforço comum, a concubina que provou aquela prestação, ou a sua contribuição para a aquisição de bens, durante a sua longa convivência com o ex- amásio” (RT 277/290). 

Somente com a promulgação da Constituição de 1988 é que se conferiu legitimidade ao concubinato no plano do Direito. O §3º do art. 226 foi taxativo: 

“Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento“. A partir de então aposentaram-se os termos “concubinato” e “mancebia” e adotou-se a expressão “união estável” usada pelo constituinte. 

No entanto, muito faltava ainda a ser discutido. Como o leitor pode perceber, até mesmo o constituinte foi tímido e infeliz na redação do dispositivo, primeiramente por especificar que a união deveria ser “entre o homem e a mulher”, e, ademais, por ressalvar que a lei deveria “facilitar sua conversão em casamento”.  Ora, diante dos princípios da proteção da dignidade da pessoa humana e da não discriminação, que servem de sustentáculo á Constituição, nem se pode deixar de reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo, nem colocar o casamento em posição privilegiada no rol das entidades familiares. 

Inicialmente, a doutrina e a jurisprudência posteriores a 1988 mantiveram-se firmes na negação tanto do reconhecimento dos direitos dos conviventes em união estável à sucessão e a alimentos, como da competência das varas de família para julgar as ações respectivas. 

Mais tarde, em 1994, veio a Lei n. 8.971 estabelecer, de uma vez por todas, os direitos dos conviventes à sucessão e aos alimentos.  No entanto, a lei pecou por limitar seu alcance aos companheiros cuja convivência durasse, no mínimo, cinco anos, ou da qual houvessem nascido filhos (art. 1º). 

Em 1996, então, editou-se a Lei n. 9.278, cuja emenda assevera: “regula o  3º do art. 226 da Constituição Federal”. Em seis artigos apenas, a lei realmente esclareceu certos pontos e trouxe alguns avanços. Primeiramente, deixou de estabelecer prazo mínimo de convivência para que se configure a união estável (art. 1º).  No art. 2º, elencou os chamados “direitos e deveres iguais dos conviventes”: respeito e consideração mútuos; assistência moral e material recíproca; e guarda, sustento e educação dos filhos comuns

Além disso, estatuiu a presunção de que o patrimônio adquirido onerosamente na constância da união estável o foi em condomínio (art. 5º), o que instaurou um verdadeiro regime de comunhão parcial de bens na união estável. Por fim, encerrou o debate sobre a competência, fixando a das varas de família, para toda a matéria relativa à união estável (art. 9º da Lei).

Posteriormente, em 2002, o novo Código civil dedicou um título do livro do Direito de Família à união estável. Como o leitor já deve esperar, cuida-se de mais um ponto em que o Código de 2002 deixou a desejar, como veremos adiante. 

Finalmente, em 2011, o Supremo Tribunal Federal deu mais um passo na disciplina jurídica da união estável, reconhecendo como tal a união homoafetiva, dando à Constituição a interpretação sistemática que lhe é devida: por mais que o art. 226, § 3º se refira à união entre homem e mulher, a própria Constituição funda o Estado na proteção da dignidade da pessoa humana (art. 1], III), proíbe a discriminação (art. 3º, IV) e ainda equipara homens e mulheres em direitos e deveres (art. 5º, I). 

Por Elpídio Donizetti e Felipe Quintella. 

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