Por: Dra. Mariana Santos Spindola & Dra. Camila Comann
A responsabilidade civil é o dever jurídico de reparação, imposto a alguém que violou normas legais ou contratuais e gerou danos a outrem. Em regra, para aplicação do referido instituto é imprescindível que reste comprovado 1) o ato ilícito (conduta comissiva ou omissiva que violou o direito de outrem); 2) a culpa do ofensor (negligência, imprudência ou imperícia); 3) o dano (prejuízo sofrido); e 4) o nexo de causalidade (interligação entre a conduta culposa e o dano).
Contudo, o Código de Defesa do Consumidor, promulgado em 1990, trouxe inovações na matéria de responsabilidade civil, instituindo a denominada “Responsabilidade Civil Objetiva”, a qual, em linhas gerais, excepciona o que precisa ser demonstrado para aplicação do dever de reparação. Em síntese, a responsabilidade objetiva disciplina que o dever de reparação é independente de culpa, sendo necessário apenas que o ofendido demonstre o ato ilícito cometido pelo ofensor, o dano sofrido e o nexo de causalidade.
Sobre a referida lei, é importante pontuar que a sua criação visou garantir o cumprimento da defesa do consumidor, previsto como direito fundamental individual e princípio da atividade econômica pela Constituição Federal. A referida proteção do consumidor se viu necessária com a massificação dos processos de criação, que gerou uma desigualdade entre o produtor/fornecedor/distribuidor e o consumidor, que passou a ter seus direitos desamparados. Assim, o Código de Defesa do Consumidor trouxe mecanismos e instrumentos que reduzem essa desigualdade, assim como facilitam o acesso do consumidor aos seus direitos.
Dentre outras, tem-se como ferramentas de maior importância nesta legislação especial, o aumento do prazo prescricional (prazo que o consumidor tem para reclamar um direito seu que foi violado, pedindo reparação), a inversão do ônus probatório (de modo que quem precisa comprovar o cumprimento dos deveres legais e contratuais, é o produtor/distribuidor/fornecedor), assim como o reconhecimento da responsabilidade objetiva nas relações de consumo.
Ocorre que ao elaborar a referida lei, a fim de evitar lacunas ou dúvidas acerca de quem seria considerado produtor/distribuidor/fornecedor de produtos e serviços para consequente aplicação ao caso concreto, o legislador qualificou toda e qualquer atividade econômica como produtor/fornecedor/distribuidor, e todo destinatário final do produto ou serviço, como consumidor.
Com isso, o Código de Defesa do Consumidor vem sendo aplicado, de modo indistinto, a toda e qualquer relação que se tenha de um lado, um fornecedor de serviços e de outro, o destinatário final deste serviço, o que inclui serviços relacionados à saúde e a saúde estética.
Por consequência, ao se analisar a responsabilidade civil por atos praticados no desempenho da atividade profissional da saúde estética, tem-se aplicado o entendimento da responsabilidade objetiva, ou seja, independentemente de culpa, nos termos do art. 14, do Código de Defesa do Consumidor. Na melhor das hipóteses, quando o profissional atua de maneira liberal, aplica-se o disposto no § 4º do citado artigo, que diz “a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.”, que nada mais é que uma exceção à aplicação da Responsabilidade Objetiva nas relações de consumo.
Ademais, a jurisprudência majoritária faz distinção entre as reclamações acerca de procedimentos estéticos e cirurgias reparadoras. Sendo procedimentos estéticos, entende-se que existe uma obrigação de resultado, com base na expectativa do paciente e o que promete o profissional. Já no caso de cirurgias reparadoras, exige conhecimento técnico, sem a obrigação de garantir a cura, configurando então uma atividade de meio, ou seja, aquela em que o profissional não se compromete com o resultado. À vista disso, cumpre esclarecer que intervenções, ainda que estéticas, são mecanismos para assegurar a saúde física, psicológica ou social do indivíduo.
Logo, não se se pode exigir do profissional da saúde, pela própria natureza de suas intervenções, seja ela reparadora ou estética, a garantia de determinado resultado prático, face a imprecisão da prestação do serviço, e considerar a não obtenção de resultado como quebra de contrato é temerário. A imperícia, imprudência ou negligência no cuidado com o paciente é que são causas de responsabilização do profissional.
Nesse sentido, cabe destacar, que o profissional da saúde pode até ser considerado um prestador de serviço, mas a aplicação do CDC para julgar questionamentos acerca de procedimentos/cirurgias estéticas, ou qualquer atividade médica, de cunho intelectual, não se mostra viável, porque a vida e a saúde não possuem natureza mercantilista.
Assim, há que se considerar que a análise das relações tidas com os profissionais que atuam na saúde estética, não pode se limitar à interpretação literal da norma consumerista, imperando um aprofundamento acerca destas atividades profissionais, com uma análise sistêmica das normas específicas que regem essas profissões. Isso, devido às particularidades da atividade desempenhada por estas categorias profissionais, que em nada se assemelham às demais atividades empresariais praticadas no mercado econômico.
Ora, é inegável que o objeto destas atividades profissionais está intrinsecamente ligado à promoção da saúde, e, consequentemente, à vida, não podendo receber tratamento idêntico às atividades empresariais que possuem como único objetivo o lucro. Além disso, é inegável que estas profissões não possuem a mesma liberdade de atuação que as demais, sequer podendo divulgar amplamente os serviços prestados, sob pena de violar normas éticas.
Em breve leitura de normas éticas de algumas profissões que atuam na saúde estética, como o Código de Ética Odontológico e o Código de Ética Médica, se depreende, expressamente, que tais atividades não se equiparam a atividades mercantis, inclusive sendo vedado realizar propagandas com caráter mercantilista.
É sabido que os conselhos de classe não possuem poder legislativo, se limitando a regulamentar e fiscalizar a classe profissional que representa, em prol da sociedade. Porém, é indiscutível a importância das normas que regulamentam o convívio em sociedade, estarem de acordo com a realidade fática, sob pena de tornar inviável a sua aplicação. No caso, se mostra primordial a observância, pelo Poder Legislativo, no momento de criação das leis, das peculiaridades que regem as citadas classes profissionais, em especial, por se mostrar prejudicial à sociedade, que os profissionais da saúde estética passem a agir como players do mercado econômico, sem os limites necessários para que tal atividade se atenha à promoção da saúde dos pacientes.
Da mesma maneira, não se mostra razoável que, na prática profissional destas categorias, sejam impostos obrigação de adequação e eficiência prevista no CDC, uma vez que não desempenham uma atividade mercantil e de consumo, inclusive recebendo punições caso atuem deste modo, mas, quando acionados judicialmente, respondam como qualquer outro fornecedor de serviços que visa o lucro e dispõe de um campo livre para sua atuação e prospecção de clientes.
Frise-se que, dada a relevância conferida pela Constituição de 1988 no tocante a proteção ao direito à vida, seria impossível conceber a ideia de garantir o bem maior, vida, deixando de lado o bem que a assegura, qual seja, a saúde. Neste sentir, igualmente se mostra inviável entender a saúde como um bem de consumo.
Enfim, em que pese a jurisprudência majoritária ter entendimento contrário, há tribunais se posicionando, inclusive destoando da jurisprudência do STJ, pela inaplicabilidade das normas consumeristas nas relações envolvendo profissionais da saúde. A doutrina também tem entendimento diverso, inclusive o próprio Conselho Federal de Medicina – que é responsável por regulamentar e fiscalizar a classe profissional -, não distingue procedimentos reparadores e embelezadores, assim como afasta a relação consumerista da prática da Medicina.
À vista disso, por meio de uma interpretação sistemática faz concluir pela não incidência do digesto quando os serviços são prestados por profissionais da saúde, porque a vida e saúde não são bens de consumo. Assim, entendida a natureza não mercantilista da atividade relacionada a saúde, resta absolutamente clara a ilegalidade consumerista.
Portanto, impõe-se a responsabilidade civil subjetiva convencional, acrescida do aspecto central da responsabilidade civil dos profissionais da área da saúde, para julgar questionamentos cerca de procedimentos estéticos e cirurgias reparadoras.