Enquanto famílias inteiras lutam para sobreviver diante de juros abusivos e dívidas impagáveis, parte do Judiciário ignora o espírito humanitário da lei e protege o lucro dos bancos em detrimento da dignidade humana.
A Justiça que se Afasta da Realidade
Há um descompasso doloroso entre o ideal de Justiça previsto na Constituição e a prática de parte do Judiciário brasileiro. Em teoria, a Justiça existe para equilibrar as forças, amparar os vulneráveis e impedir o abuso dos poderosos. No entanto, quando o tema é o superendividamento das famílias, a realidade se mostra cruelmente diferente.
Milhares de brasileiros estão mergulhados em dívidas que ultrapassam qualquer capacidade de pagamento. São pessoas que, diante de um cenário econômico adverso, recorreram a empréstimos para sobreviver — não para enriquecer. E o que encontram quando buscam amparo no Judiciário? Portas fechadas.
Muitos magistrados, lamentavelmente, têm negado o benefício da justiça gratuita mesmo a pessoas que comprovadamente vivem em situação de miséria financeira, alegando formalidades frias e desconectadas da realidade social. Ignoram o fato de que o próprio superendividamento — provocado por taxas de juros extorsivas e contratos abusivos — já é prova suficiente da incapacidade econômica do cidadão.
Essa postura revela não apenas uma falta de sensibilidade, mas uma profunda incompreensão do papel humanizador do Direito. A Justiça, quando se torna burocrática e insensível, deixa de ser justiça. Torna-se uma máquina fria, a serviço de quem pode pagar por ela.
A Lei do Superendividamento e a Intenção do Legislador
Em 2021, o Brasil deu um passo civilizatório ao aprovar a Lei nº 14.181/2021, conhecida como Lei do Superendividamento. Essa norma nasceu para devolver esperança a milhões de famílias sufocadas por dívidas impagáveis, criando mecanismos de renegociação coletiva, transparência nas ofertas de crédito e, sobretudo, proteção à dignidade da pessoa humana — fundamento da República.
O legislador deixou claro: a intenção não era apenas regular o mercado de consumo, mas salvar vidas. A lei reconhece o superendividado como alguém que merece acolhimento, e não punição. No entanto, o que vemos na prática é a resistência de muitos magistrados em aplicar seus dispositivos, como se a lei fosse uma mera recomendação.
Essa resistência se manifesta, por exemplo, quando o Judiciário desconsidera pedidos de plano de pagamento ou de suspensão de cobranças abusivas, ignorando a finalidade da norma. O resultado é o colapso emocional e financeiro de famílias que perdem tudo — emprego, crédito, paz e, muitas vezes, a vontade de seguir lutando.
Durante o II Congresso Nacional de Direito Bancário da Associação Brasileira de Advogados (ABA), realizado nos dias 30 e 31 de outubro, em São Paulo, o tema foi amplamente debatido. Especialistas de todo o país reforçaram que a efetividade da Lei do Superendividamento depende, acima de tudo, de empatia judicial. Não basta conhecer o texto da lei — é preciso compreender o seu espírito: restaurar o equilíbrio social e impedir que a vulnerabilidade econômica seja transformada em condenação perpétua.
Quando o Lucro Vale Mais que a Dignidade
A grande tragédia brasileira é que os bancos, que lucram bilhões todos os anos, continuam ditando as regras do jogo. Juros que ultrapassam 400% ao ano são tratados como “condições de mercado”, enquanto famílias desesperadas são rotuladas como “maus pagadores”. O Estado, por sua vez, se omite.
E quando a Justiça — último refúgio do cidadão — se alinha ao poder econômico, o resultado é devastador. Negar justiça gratuita a quem mal consegue comprar o básico para sobreviver é o mesmo que negar acesso à Justiça, direito consagrado no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. É transformar o processo judicial em privilégio de poucos.
É preciso lembrar que o juiz não é um espectador da miséria social. Ele é um agente de transformação, um intérprete da lei à luz da realidade humana. A toga não deve ser um escudo de indiferença, mas um símbolo de compaixão, sensatez e equilíbrio.
Quando magistrados tratam o endividado como um infrator, e não como uma vítima de um sistema financeiro predatório, traem a própria essência do Direito. O lucro não pode valer mais do que a dignidade. A Justiça não pode ser seletiva, nem pode ignorar o sofrimento de famílias que apenas pedem o direito de recomeçar.
Reflexão Final: A Justiça que Precisamos Reconstruir
Como advogado e presidente da Associação Brasileira de Advogados (ABA), tenho testemunhado o drama diário de pessoas que chegam ao Judiciário implorando por compreensão — e encontram resistência. A ABA tem se posicionado de forma firme e corajosa, realizando congressos, capacitações e campanhas de conscientização para que a Justiça brasileira recupere sua sensibilidade social.
É hora de lembrarmos que o Direito é feito para as pessoas, não para as instituições financeiras. Que a Constituição é uma carta de humanidade, não de burocracia. E que cada decisão judicial carrega o poder de mudar um destino.
Quando a Justiça se nega a ouvir o clamor dos endividados, ela se afasta do povo e se aproxima do lucro. Quando protege bancos em vez de famílias, ela esquece sua missão. Mas quando um magistrado decide com o coração atento à lei e à vida, ele faz mais do que aplicar o Direito: ele devolve esperança.
O Brasil precisa de juízes assim — humanos, sensíveis e corajosos — capazes de enxergar que a verdadeira Justiça é aquela que equilibra a balança em favor da dignidade humana.
Palavras-chave:
Lei do Superendividamento, Justiça gratuita, magistrados brasileiros, direitos do consumidor, endividamento familiar, juros abusivos, bancos, dignidade humana, advocacia, Esdras Dantas de Souza, Associação Brasileira de Advogados, ABA, Congresso Nacional de Direito Bancário.
Por Esdras Dantas de Souza
Advogado, Professor de Direito Público e Presidente da Associação Brasileira de Advogados (ABA)