PREVARICAÇÃO, A CPI E A LUTA PELA RACIONALIDADE PUNITIVA

No dia 28/06/2021 a CPI da Covid apresentou, no Supremo Tribunal Federal, uma notícia-crime em que pede a investigação do presidente Jair Bolsonaro por suposto crime de prevaricação.

Ao justificar a notícia-crime, parlamentares afirmam que, após o depoimento dos irmãos Miranda, seria possível entender que o presidente teve conhecimento de que poderia haver um esquema criminoso envolvendo a busca pela vacina indiana Covaxin, bem como dos atores envolvidos. 

Argumentou um dos parlamentares que, “como agente político da maior envergadura, o presidente não pode guardar para si informação tão relevante a ponto de apurar indícios de corrupção que remontam a cifra bilionária no bojo de uma pandemia com consequências sanitárias e socioeconômicas tão graves. Tinha ele o dever inafastável de oferecer os indícios de que dispunha à autoridade competente, para as apurações mais detalhadas”.[1]

Em lealdade ao ordenamento jurídico-penal vigente, é importante esclarecer, que prevaricação provém da palavra latina praevaricatio, que denota o sentido de quem tem as pernas tortas ou cambaias, surgindo daí o nome praevaricator, que expressa o sentido de quem caminha obliquamente ou se desvia do caminho certo.  

No Código Penal, o crime está descrito no art. 319: “Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal: Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa”.

O legislador teve em mira resguardar o normal funcionamento da Administração Pública, no tocante a realização dos seus fins, que não podem ser inviabilizados pela conduta daquele que não pauta o seu ofício com dever de lealdade e de fidelidade em relação à função pública exercida.

O ponto central, contudo, que merece destaque é que o crime de prevaricação exige para a sua configuração um fim especial de agir, isto é, o prevaricador precisa atuar para satisfazer interesse ou sentimento pessoal. O interesse pode ser patrimonial ou moral; o sentimento pessoal, por sua vez, demanda o reconhecimento de um estado afetivo ou emocional, manifestado através de uma paixão ou emoção, como o amor, o ódio, a piedade e o espírito de vingança.

Eis o pano de fundo que permeará a notícia-crime já encaminhada ao STF, cabendo aos Ministros da Corte, uma vez ouvida a PGR, desempenhar um papel central na definição do conteúdo do crime de prevaricação, projetando sua atuação com elevada carga de discricionaridade, já que preencherá, para além da lei, o significado do crime de prevaricação, considerando as particularidades do caso concreto.

Em um ambiente político densificado, com intensos debates interinstitucionais e a presença de ruídos de toda ordem, cabe o alerta de que uma atividade interpretativa do direito penal demasiadamente ampla, fundada em critérios pragmáticos e/ou subjetivos, por vezes inconfessáveis, pode não apenas comprometer a racionalidade do sistema jurídico-penal, mas também vulgarizá-lo, utilizando-o como arma política, em descompasso com a própria base constitucional do aparato punitivo.

Se houve ou não prevaricação, apenas as investigações poderão elucidar. A única certeza, porém, é que, ao contrário de possuir pernas tortas ou cambaias, o direito penal possui alicerces históricos, hígidos, insuperáveis e insuscetíveis, portanto, ao arbítrio e ao poder desmedido das instituições. 

Por Douglas de Barros Ibarra Papa é Advogado, Mestre em Direito Penal (Largo do São Francisco – USP). Professor dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMT. Membro da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB/MT e da Associação Brasileira de Advogados (ABA/MT).


[1] Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/06/28/covaxin-senadores-pedem-ao-stf-que-abra-inquerito-sobre-suposta-prevaricacao-de-bolsonaro.ghtml. Acesso: 29 de junho de 2021.

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