Yuri Wawrick Cambraia*
“Os dias talvez sejam iguais para um relógio, mas não para um homem.”
Marcel Proust (1871 – 1922)
1 – Da quantidade e duração das Execuções Fiscais
Não são raros os processos fiscais tramitando há décadas, os quais afetam diversas gerações de executados, fenômeno de verdadeiro tormento aos contribuintes. Em respeito ao Princípio da Razoável Duração Processual e da Segurança Jurídica, ninguém deve estar à mercê de persecuções processuais Ad Aeternum.
A duração média das Execuções Fiscais supera 08 anos, segundo dados relativos ao biênio 2020-2021, coletados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) [1]. Tal espécie de ação representa 35% do total de trâmites pendentes no judiciário, com uma taxa de congestionamento de expressivos 90% ao fim de 2021. Isso significa que de cada 100 execuções fiscais pendentes (independentemente de quando foram ajuizadas), apenas 10 foram findadas ao longo de 2021 [2].
Ainda, o levantamento indica que, das 26,8 milhões de Execuções Fiscais classificadas no grupo de “ações pendentes” (ou seja, ainda em trâmite), 7 milhões se encontravam suspensas – um percentual de 26,4% [3].
Segundo o mesmo relatório do CNJ, esses valores superam notavelmente a média de duração de todas as outras espécies processuais. Assim, tal modalidade tem sido apontada como o principal fator de morosidade do Poder Judiciário.
Com essa realidade em mente e sabendo que o prazo prescricional do crédito tributário é de 05 anos [4], assumiremos as seguintes premissas:
- Um dos geradores de tal morosidade é a recorrente aplicação de causas suspensivas sobre a contagem do prazo prescricional, o que naturalmente prolonga o processo por dificultar sua extinção;
- Grande parte dessas suspensões ocorre com base em dispositivos da Lei Ordinária 6.830/1980 – Lei de Execução Fiscal (LEF) –, tais como seu artigo 2, §1° e artigo 40, caput, conforme analisaremos.
É sobre tais premissas que será construído um breve ensaio crítico para demonstrar a prejudicialidade causada por certos dispositivos da LEF. Concomitantemente, será apontada a inconstitucionalidade (formal e material) de tais trechos normativos, bem como seu dano à Segurança Jurídica.
2 – Prescrição: fundamento, natureza e finalidade
O vocábulo “prescrição” origina-se do termo praescriptio, instituto oriundo do Direito Romano e criado por volta do século V [5], fato que já denota reconhecimento de sua importância desde épocas antigas. Seu fundamento de existência está no interesse público, sendo tal entendimento corroborado por Pontes de Miranda, que afirma que sua aplicação “serve à segurança e à paz pública” [6].
No âmbito tributário, a prescrição, conforme prof. Paulo de Barros Carvalho ensina, é fato jurídico de direito material [7]. Ainda, nas precisas palavras de Renata Ricetti Marques, pode-se definir a prescrição como “o fim do limite do tempo para se alcançar a exigibilidade do crédito tributário”, não sendo definido pelo seu efeito (extinção do crédito), mas pelo seu objeto operacional – o tempo [8].
Importante frisar que tal regra não existe para “acobertar devedores inadimplentes”, tampouco para estimular o descumprimento de obrigações. Trata-se de verdadeira proteção às relações como um todo – incluindo “não devedores” que porventura sofram execuções indevidas e que, devido ao translado temporal, muitas vezes sequer detêm a possibilidade prática de produção probatória de sua inocência.
3 – Legitimidade para disciplinar prescrição tributária
Imperioso lembrar que toda competência legislativa emana de nossa Carta Magna. Desta feita, o Texto Constitucional deve ser o ponto de partida de qualquer interpretação jurídica, em especial para esse ensaio, pautado no Direito Positivo.
Neste passo, a Constituição Federal de 1988 (CF-88) é clara ao estabelecer que apenas Lei Complementar pode tratar de “norma de prescrição” em âmbito tributário, estabelecendo dois requisitos ontológico-formais [9]:
- Ser instituto com expressa reserva legal (art. 146, III, CF-88);
- Exigência de processo legislativo de quórum qualificado (art. 69, CF-88):
Assim, vejamos o que diz artigo 146 da Constituição Federal de 1988:
Art. 146. Cabe à lei complementar: (…)
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: (…)
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;
(grifos nossos)
Embora o assunto gere divergência doutrinária e jurisprudencial, tal dispositivo constitucional coloca o Código Tributário Nacional (CTN) como lei competente
para o assunto. Portanto, é no CTN que devemos encontrar todas as normas sobre prescrição tributária, a saber, prazo, contagem, suspensão, interrupção, entre outras.
Isto pois o CTN – legislação de 1966 – foi abarcado pelo Princípio da Recepção, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), sendo aceito pela Constituição Federal de 1988 como Lei Complementar. Consequentemente, recebeu fundamento de validade como lei (material e formalmente) compatível com a nova ordem, encaixando-se no inciso III do mencionado artigo 146. Em suma, é o Código Tributário Nacional que deve ditar normas gerais de matéria de direito tributário, inclusive sobre prescrição.
4 – Mas e a Lei 6.840/80 (Lei de Execução Fiscal)?
A Lei 6.830/80 (LEF), publicada sob a vigência da Constituição de 1967, dispõe sobre conteúdo essencialmente processual e, ainda, traz enunciados sobre prescrição e decadência. Isso se deve ao fato de que a Carta Magna da época, apesar de afirmar que apenas Lei Complementar regularia “normas gerais de direito tributário”, não especificou o que seriam tais normas e qual seu conteúdo – especificação que só veio com o advento do artigo 146, inciso III, da atual Constituição.
Eis que a Lei 6.830/80 (LEF) foi recepcionada como Lei Ordinária com a vinda da CF-88. Reforcemos tal ponto: o sistema jamais reconheceu a LEF como Lei Complementar – prova disto é que suas alterações são realizadas por leis ordinárias, como na edição da Lei 11.051/04, a qual alterou § 4°, art. 40, da Lei de Execução Fiscal.
Desta forma, resta claro que tal código não possui características materiais nem formais que lhe concedam competência para disciplinar prescrição, salvo para obrigações não tributárias, como multas por inadimplemento.
Mesmo assim, parece ter se tornado praxe no Judiciário a aplicação de regras prescricionais da Lei de Execução Fiscal, em especial causas suspensivas não previstas pelo CTN. Clássico exemplo é o frequente uso do artigo 2°, §3°, e do artigo 40, ambos da Lei de Execução Fiscal, os quais ditam normas de suspensão de prazo prescricional:
Art. 2°. (…)
§ 3º – A inscrição, que se constitui no ato de controle administrativo da legalidade, será feita pelo órgão competente para apurar a liquidez e certeza do crédito e suspenderá a prescrição, para todos os efeitos de direito, por 180 dias, ou até a distribuição da execução fiscal, se esta ocorrer antes de findo aquele prazo.
Art. 40. O juiz suspenderá o curso da execução, enquanto não for localizado o devedor ou encontrados bens sobre os quais possa recair a penhora, e, nesses casos, não correrá o prazo de prescrição.
(grifos nossos)
Ora, tais dispositivos são inconstitucionais na medida em que não encontram apoio no CTN, sendo a Lei 6.830/1980 (LEF) incompetente para interferir no instituto da prescrição de créditos tributários. Tal matéria é resguardada à Lei Complementar por expressa reserva legal constitucionalmente estipulada.
Portanto, nosso ordenamento jurídico tributário possui regras que fogem da reserva legal estipulada pela Carta Maior, as quais recaem em expressa inconstitucionalidade (como é o caso dos artigos 2° e 40 da LEF). Apenas o Código Tributário Nacional poderia legislar sobre tal matéria.
5 – Considerações finais
Inicialmente, foi exposto um breve acervo de dados empíricos a fim de ilustrar a quantidade de Execuções Fiscais pendentes no Judiciário, bem como a grande duração no trâmite dessa espécie processual. Tomamos como premissa que uma das causas da morosidade (e quantidade) de tais ações se deve à aplicação de institutos suspensivos de prazo prescricional através de dispositivos presentes na Lei de Execução Fiscal, mas ausentes no Código Tributário Nacional.
Focamos o tema no resgate da legalidade tributária básica, partindo-se do Direito Positivo com foco nos ditames da própria Constituição. Trata-se de defesa da Estrita Legalidade perante flagrante inobservância de enunciados constitucionais expressos – em especial o artigo 146 da Constituição Federal.
Foi consignado, ao analisar a estrutura das duas principais leis tributárias (CTN e LEF), que qualquer trecho da Lei 6.830/1980 (LEF) sobre prescrição de crédito tributário deve ser considerado inconstitucional, salvo se estiver em sintonia expressa com o CTN. Noutro passo, é aceitável aplicar prescrição através da LEF desde que o objeto seja obrigação não tributária (dever instrumental, sanções etc.).
Por fim, é preciso relembrar que as normas sobre “tempo do direito” têm essencial destaque no que tange a estabilidade, previsibilidade e segurança das relações. Tais regras merecem delicada atenção sob pena de incorrermos, por exemplo, em longas persecuções fiscais, calcadas em legislação incompetente para normatizar o assunto, deixando o contribuinte à mercê do Poder Estatal e, adicionalmente, aumentando o afogamento do Judiciário com uma maior quantidade de processos que já poderiam ter sido extintos via prescrição.
6 – Referências
- Conselho Nacional de Justiça. RELATÓRIO: Justiça em Números 2021. https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/relatorio-justica-em-numeros2021- 12.pdf. CNJ. Pg. 181. Acesso em 20/11/2022.
- Conselho Nacional de Justiça. RELATÓRIO: Justiça em Números 2022. https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/09/justica-em-numeros-2022-1.pdf. CNJ. Pg. 164. Acesso em 18/11/2022.
- Conselho Nacional de Justiça. RELATÓRIO: Justiça em Números 2022. https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/09/justica-em-numeros-2022-1.pdf. CNJ. Pg. 167, Figura 110. Acesso em 18/11/2022.
- BRASIL, Código Tributário Nacional (1966), Capítulo IV – EXTINÇÃO DO CRÉ- TIDO TRIBUTÁRIO. Artigo 174: “A ação para a cobrança do crédito tributário pres- creve em cinco anos, contados da data da sua constituição definitiva.”. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm. Acesso em: 23/11/2022.
- DE PAULA, Edylcéa Tavares Nogueira. Coleção Textos de Direito Tributário vol. 6: Prescrição e Decadência no Direito Tributário. Ed. Revista dos Tribunais. São Paulo. pg. 03.
- MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. 2ª edição. Rio de Janeiro: Bor- soi, 1955, t. 6, § 662, pg. 100.
- CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário (31ª edição). São Paulo. Editora Noeses, 2021. Pg. 507-508.
- MARQUES, Renata Elaine Silva Ricetti. Curso de Decadência e de Prescrição no Direito Tributário. 5ª Edição. Editora Noeses. Edição do Kindle. Pg. 87.
- MARQUES, Renata Elaine Silva Ricetti. Curso de Decadência e de Prescrição no Direito Tributário. 5ª Edição. Editora Noeses. Edição do Kindle. Pg. 486.