Multipropriedade não é valor mobiliário

Por: Dr. Paulo Ferreira Dias da Silva

Resumo

A compra e venda de frações de tempo em unidade imobiliária autônoma, com adesão voluntária a sistema (pool) de locação, submete-se ao regime da multipropriedade[1], estabelecido nos artigos 1.358-B a 1.358-U do Código Civil Brasileiro e nos artigos 176 e 178 da Lei de Registros Públicos, razão pela qual não se submete ao regime dos valores mobiliários estabelecido na Lei nº 6.385/76.

 

Sumário

  1. O conceito genérico de valor mobiliário e o alcance da Resolução CVM nº 86/2022
  2. Aspectos da multipropriedade que a excluem do regime dos valores mobiliários
  3. Decisão da CVM sobre multipropriedade
  4. Considerações finais

I.          O conceito genérico de valor mobiliário e o alcance da Resolução CVM nº 86/2022

“São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei: quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.” (Texto do inciso IX do art. 2º da Lei nº 6.385/76, nela inserido pela Lei nº 10.303, de 31.10.2001)

1.1     O dispositivo legal em destaque já foi objeto de intensas análises e discussões nos campos acadêmico, doutrinário e jurisprudencial, a ponto de atualmente gozar de certa pacificação quanto a seu alcance teórico. No entanto, sua índole genérica lhe concede aptidão permanente para novos desafios de ordem prática, impostos pela capacidade empreendedora da sociedade e o consequente desenvolvimento de diferentes modalidades de negócios.

1.2     Uma prova dessa aptidão permanente é a antiguidade do conceito[2] subjacente ao dispositivo que transformou em lei uma definição de valor mobiliário pautada em elementos conceituais derivados da experiência jurisprudencial norte-americana, consolidada em decisão da Suprema Corte datada de 1946 para o caso S.E.C. v. W. J. Howey Company[3].

1.3     O Prof. LEÃES[4] nos forneceu um detalhamento desse emblemático processo: a Howey Company vendia pequenos lotes de terra para serem utilizados no plantio de frutas cítricas. Em outro contrato, anexo ao contrato de venda e compra de terra, a Howey-in-the-Hills Service Company, subsidiária da primeira, comprometia-se a prestar serviços de plantio e cultivo de terra, bem como de comercialização das frutas ali produzidas, cujos resultados eram distribuídos entre os investidores.

1.4       Ao analisar o caso, a Suprema Corte estadunidense concluiu que tais contratos traduziam investimentos feitos por centenas de pessoas que, carecendo de conhecimento, experiência e equipamentos necessários ao cultivo das frutas cítricas, investiram passivamente em um negócio dirigido por terceiros na expectativa de obter lucros, não se tratando, pois, de simples aquisições de glebas de terra dividida em frações economicamente inviáveis se consideradas isoladamente.

1.5       O caso Howey teceu, ao fim, uma definição de contrato de investimento em que a substância prevalece sobre a forma e que passou a ser a própria definição de security, cuja aplicação a novos casos ficou conhecida como Howey Test: “A security is a transaction (…) whereby (1) a person invests his money (2) in a common enterprise and (3) is led to expect profits (4) solely from the efforts of the promoter or a third party[5].

1.6     No Brasil, essa definição de contrato de investimento coletivo acabou sendo inserida no corpo da Lei nº 6.385/76 (a lei que criou a Comissão de Valores Mobiliários – CVM) como um conceito genérico de valor mobiliário que passou, então, a estar sob o regime dessa lei (texto no destaque acima).

1.7     Tal iniciativa legislativa logrou conceder à CVM o poder de regular e supervisionar operações realizadas fora do mercado de capitais tradicional, além de proporcionar-lhe mais autonomia, pois a determinação do que seria valor mobiliário deixou de depender de alterações na lei, bastando para tanto a interpretação técnica da entidade reguladora, ainda que sujeita a revisão pelo Poder Judiciário[6].

1.8     Com efeito, a CVM passou a lançar mão do Howey Test  para fundamentar suas decisões, como ocorrido no julgamento do Processo CVM RJ 2007/11593, cuja decisão, publicada em 22.01.2008[7], utilizou o conceito genérico para verificar se Cédulas de Crédito Bancário – CCB, quando ofertadas publicamente, constituiriam valores mobiliários. Segue a transcrição de parte do voto decisivo:

Segundo a definição que consta em Howey, o conceito de security deve abranger “qualquer contrato, negócio ou arranjo por meio do qual uma pessoa investe seu dinheiro em um empreendimento comum e espera receber lucros originados exclusivamente dos esforços do empreendedor ou de terceiros.

Analisando este conceito, a doutrina e a jurisprudência norte-americanas destacam cinco elementos:

  1. para que estejamos diante de um security, uma pessoa deve entregar sua poupança a outra com o intuito de fazer um investimento;
  2. a natureza do instrumento pelo qual o investimento é formalizado é irrelevante, pouco importando se ele é um título ou contrato ou conjunto de contratos;[8]
  3. o investimento deve ser coletivo, isto é, vários investidores devem realizar um investimento em comum; [9]
  4. o investimento deve ser feito com a expectativa de lucro, cujo conceito é interpretado de maneira ampla, de forma a abarcar qualquer tipo de ganho;[10] e
  5. o lucro deve ter origem exclusivamente nos esforços do empreendedor ou de terceiros, que não o investidor.[11]

Sem muitas dificuldades, podemos perceber que estas diretrizes encontraram acolhida no inciso IX do art. 2º da Lei nº 6.386/76, que estabeleceu os seguintes requisitos para a caracterização dos valores mobiliários:

  1. deve haver um investimento (“IX – … quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo …”);
  2. o investimento deve ser formalizado por um título ou por um contrato (“IX – … quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo …”);
  3. o investimento deve ser coletivo, isto é, vários investidores devem investir sua poupança no negócio (“IX – … quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo …”);
  4. o investimento deve dar direito a alguma forma de “remuneração”, termo ainda mais amplo que o correlato “lucro” utilizado no direito norte-americano (“IX – … títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração …”);
  5. a remuneração deve ter origem nos esforços do empreendedor ou de terceiros que não o investidor (“IX – … cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros”); e
  6. os títulos ou contratos devem ser objeto de oferta pública, requisito que não encontra similar no conceito norte-americano mas que se coaduna perfeitamente com o sistema regulatório dos Estados Unidos (“IX – quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos …”).

1.9       Enfim, a introdução do conceito genérico de valor mobiliário no direito positivo brasileiro acabou por viabilizar a inclusão imediata, na esfera da CVM, de uma vasta gama de ofertas de investimento realizadas em diferentes setores da economia, relegando-se a momento posterior a eventual regulação específica de cada caso[12].

1.10   Foi o que aconteceu com os chamados condo-hotéis, posteriormente denominados contratos de investimento coletivo hoteleiro  (“CIC hoteleiro”) pela regulação da CVM. No entanto, por se tratar de modalidade de financiamento/investimento utilizada por empreendimentos hoteleiros desde a década de 80[13], causou perplexidade nesse mercado a manifestação da CVM, em dezembro de 2013[14], no sentido de que tais iniciativas configuravam ofertas públicas de valores mobiliários e deviam, portanto, seguir as regras da CVM.

1.11   À referida manifestação seguiram-se três medidas regulatórias dirigidas aos condo-hotéis: A Deliberação CVM nº 734, de 17.03.2015, a Instrução CVM nº 602, de 27.08.2018 e, finalmente, a Resolução CVM nº 86, de 31.03.2022[15], sendo a única atualmente em vigor:

RESOLUÇÃO CVM Nº 86, DE 31 DE MARÇO DE 2022

Art. 1º Esta Resolução dispõe sobre a oferta pública de distribuição de contratos de investimento coletivo – CIC hoteleiro.

Art. 2º Para os fins desta Resolução, considera-se:

I – CIC hoteleiro: conjunto de instrumentos contratuais ofertados publicamente, que contenha promessa de remuneração vinculada à participação em resultado de empreendimento hoteleiro organizado por meio de condomínio edilício;”.

Art. 3º A presente Resolução não se aplica às ofertas públicas de distribuição de contratos de investimento coletivo envolvendo esforços de venda de partes ideais de condomínios voluntários, as quais continuam sujeitas à regulamentação específica da CVM sobre ofertas públicas de distribuição de valores mobiliários.

1.12   A relevância da Resolução CVM nº 86/2022 pode ser medida a partir de sua definição de CIC hoteleiro (no inciso I de seu art. 2º, acima destacado). Tal definição, derivada do conceito genérico de valor mobiliário, traz os seguintes elementos:

  • Conjunto de instrumentos contratuais
  • Ofertados publicamente
  • Contendo promessa de remuneração vinculada a participação em resultado de empreendimento hoteleiro organizado por meio de condomínio edilício

1.13   Assim, se o empreendimento hoteleiro contiver esses três elementos, deverá obedecer à Resolução CVM nº 86/2022. Outrossim, se envolver esforços de venda de partes ideais de condomínios voluntários, o art. 3º da citada Resolução (destacado acima) estabelece que a regulação aplicável será a de ofertas públicas de distribuição de valores mobiliários em geral, consubstanciadas na Resolução CVM nº 160, de 13.07.2022, ou seja, configurará um CIC genérico.

1.14   Resta, portanto, verificar se as características da multipropriedade fazem dela uma espécie de valor mobiliário, seja na forma de CIC hoteleiro ou de CIC genérico.  É o que faremos a seguir.

II.        Aspectos da multipropriedade que a excluem do regime dos valores mobiliários

2.1   A comparação entre as características da multipropriedade, do CIC hoteleiro e do CIC genérico nos mostra que a primeira reúne alguns elementos do segundo e do terceiro – basicamente o uso de instrumentos contratuais e a realização de oferta pública[16] – mas não os preenche em sua totalidade.

2.2     Em primeiro lugar, porque os CIC, como o próprio nome diz, são contratos de investimento. Já a multipropriedade é constituída por um contrato da compra e venda de unidades residenciais cuja função predominante é a de uso e gozo pelo multiproprietário em seus momentos de lazer.

2.3     Nesse sentido, a multipropriedade constitui um direito real de propriedade[17], mais acessível, de uma residência cujo intuito de uso é evidenciado  pelo art. 1.358-P, inciso VI, do Código Civil[18], o qual prevê a afiliação da multipropriedade a programas de intercâmbio que permitem ao multiproprietário gozar de sua fração de tempo no seu condomínio ou em outros, localizados no Brasil e no exterior.

2.4     Outro elemento essencial dos CIC que inexiste na multipropriedade é a “promessa de remuneração vinculada a participação no resultado do empreendimento” do CIC hoteleiro, ou o “direito de participação, de parceria ou de remuneração” do CIC genérico.

2.5     Com efeito, em relação ao CIC genérico, a Lei da CVM diz que são valores mobiliários “quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração”. Na multipropriedade, o direito mais próximo a esse é a opção, inerente ao multiproprietário, de ceder, onerosamente ou não, sua fração de tempo a um terceiro. Porém, esse direito de alugar ou de emprestar não tem como fonte títulos ou contratos, mas a lei, o Código Civil. Ou seja, é um direito que independe de acordo ou de negociação. Esse diferença, por si só, é significativa o suficiente para distinguir, na essência, multipropriedade e valor mobiliário.

2.6     É o que se observa no inciso II do art. 1.358-I do Código Civil Brasileiro[19], o qual consagra a cessão da fração de tempo em locação ou comodato como um direito do multiproprietário. Sendo derivado de lei, é um direito subjetivo. Ao ter por objeto o domínio sobre um bem, é um direito real, de eficácia absoluta (erga omnes)[20].

2.7     Assim, o direito – subjetivo, real – que assiste ao multiproprietário de ceder em locação ou comodato sua fração de tempo não se confunde com promessa de remuneração vinculada a participação em resultado de empreendimento (elemento essencial do CIC hoteleiro) nem com direito de participação, parceria ou remuneração (elemento essencial do CIC genérico), pois esses, embora elementos de conceitos legais, dependem, para se constituir, de cláusulas contratuais.

2.8       Tal distinção se torna praticamente incontestável quando observamos que o Código Civil Brasileiro estabelece o regime de multipropriedade em toda a sua inteireza ao expressar, no seu art. 1.358-B, que “a multipropriedade reger-se-á pelo disposto neste Capítulo e, de forma supletiva e subsidiária, pelas demais disposições deste Código e pelas disposições das Leis nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964 , e nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Incluído pela Lei nº 13.777, de 2018).”

2.9       Assim, a Lei nº 6.385/76 não incide sobre a multipropriedade nem em caráter supletivo ou subsidiário, pois até a aplicabilidade das normas mais gerais – Lei de Incorporações e Código de Defesa do Consumidor – à multipropriedade foi objeto de indicação expressa pelo Código Civil, ao mesmo tempo em que este nada disse sobre a Lei da CVM.

2.10     Portanto, a regência da multipropriedade pelo Código Civil, que se deu por meio da Lei nº 13.777, de 20 de dezembro de 2018, afasta daquele instituto a incidência do regime dos valores mobiliários (nele incluída a Lei nº 6.385/76 e as normas infralegais editadas pela CVM sob a égide dessa lei) por força do princípio da especialidade e também pelo critério cronológico[21], pois a Lei nº 13.777/18 regulou inteiramente a multipropriedade e é posterior à que introduziu o conceito genérico de valor mobiliário no direito brasileiro, que é a Medida Provisória nº 1.637, de 8 de janeiro de 1998.

2.11     Conclui-se, então, que os contratos que constituem a multipropriedade não serão contratos de investimento coletivo mesmo que alguns adquirentes da fração de tempo estejam interessados na valorização futura desse bem e/ou nos rendimentos decorrentes de sua locação, interesses que, a propósito, podem se dar em qualquer compra e venda de imóvel sem atrair a incidência do regime dos valores mobiliários.

III.      Decisão da CVM em caso de multipropriedade

3.1       No Processo nº 19957.009524/2017-41, concluído em 22.04.2019, a CVM respondeu a “consulta ao Colegiado sobre a caracterização de contratos de venda de frações de tempo, em empreendimento imobiliário estruturado sob o modelo de multipropriedade (time sharing)[22], como contratos de investimento coletivo, se aliados a pool de locação voluntário e ofertados publicamente”.

3.2       O voto condutor[23] dessa decisão apresentou, ao seu final, o seguinte rol de circunstâncias que definiriam se determinado contrato de compra e venda em regime de multipropriedade deveria ou não ser considerado valor mobiliário[24]:

  • “A simples aquisição de uma unidade imobiliária, seja no regime geral, seja no regime de multipropriedade, com o objetivo de investimento não é suficiente para atrair o regime mobiliário. Esse surge quando, dentre outros elementos, a perspectiva de lucro está associada aos esforços do empreendedor ou de outro terceiro.
  • De outro lado, o simples fato de o investidor ser demandado a tomar certas medidas não é necessariamente suficiente para afastar aquele regime. O contrato de investimento coletivo pode ser caracterizado mesmo quando os esforços de terceiros não são exclusivos, contanto que esses sejam, ao final, preponderantes e decisivos para a expectativa de rentabilidade.
  • O pool de locação é um dos típicos arranjos que atrai o regime dos valores mobiliários para negócios envolvendo investimentos em imóveis. No entanto, nem toda combinação entre a oferta de uma unidade imobiliária e de adesão a um pool hoteleiro caracterizará um contrato de investimento coletivo.
  • Quando a aquisição do imóvel ou da fração temporal é condicionada à celebração de contrato por meio do qual aquela unidade ou fração é colocada em um pool obrigatório de locação, se está diante de uma oferta de contratos de investimento coletivo.
  • Quando a venda de imóveis e a adesão ao pool de locação não são indissociáveis – e essa indissociabilidade precisa ser analisada não só sob o aspecto jurídico, mas também sob o econômico – outros elementos devem ser considerados para verificar se a oferta envolveu ou não um contrato de investimento coletivo. Deve-se, em especial, atentar para a motivação dos investidores em adquirir os imóveis e a ênfase dada pelo vendedor na promoção do investimento.
  • Além do pool de locação, outros contratos ou circunstâncias podem caracterizar o produto, visto de forma integrada, como um contrato de investimento coletivo.
  • Se os imóveis são vendidos com a finalidade primária de uso pessoal, não há que se falar em uma oferta de contrato de investimento coletivo.”

3.3       Assim, segundo a referida decisão, se as frações da multipropriedade são vendidas “com a finalidade primária de uso pessoal”, não se trataria de valor mobiliário. Importa reconhecer, contudo, que tal finalidade é de difícil comprovação pois, embora o intuito de uso seja um elemento característico da multipropriedade, os contratos e demais documentos que a constituem em regra não identificam os motivos pelos quais a pessoa está adquirindo a fração de tempo.

3.4       A decisão também aponta que, “quando a aquisição do imóvel ou fração temporal é condicionada à celebração de contrato por meio do qual aquela unidade ou fração é colocada em um pool obrigatório de locação, se está diante de uma oferta de contratos de investimento coletivo”. No entanto, a oferta de adesão a um pool de locação deve considerar que ceder a fração de tempo em locação, no regime da multipropriedade, é um direito subjetivo, razão pela qual seu exercício deverá ser uma faculdade do multiproprietário, não uma obrigação.

3.5 Assim, caso o ofertante da fração de tempo estabeleça que a adesão a determinado pool de locação é obrigatória, excluirá seus contratos do regime legal da multipropriedade, abrindo a possibilidade para que sejam considerados valores mobiliários.

IV.      Considerações finais

4.1       Pelo exposto, conclui-se que o regime da multipropriedade do Código Civil afasta da multipropriedade a incidência do regime dos valores mobiliários e que, sob outro fundamento, a CVM proferiu decisão no sentido de que uma determinada oferta de venda de frações de tempo, em empreendimento imobiliário estruturado sob o modelo de multipropriedade, não constitui valor mobiliário.

4.2       A decisão da CVM mencionou a regência da multipropriedade pelo Código Civil mas não se aprofundou no alcance dessa nova legislação[25]. Vale lembrar que a Lei nº 13.777, que introduziu o regime da multipropriedade no Código Civil, é de 20 de dezembro de 2018, ou seja de poucos meses antes da decisão da CVM aqui examinada, que é de 22.04.2019. Coincidência ou não, esta foi a última manifestação do Colegiado da CVM envolvendo multipropriedade e sua eventual submissão ao regime dos valores mobiliários.

4.3       De todo modo, é importante que os empreendedores em multipropriedade atentem para o fato de que considerar a cessão de locação como direito subjetivo – e não como obrigação do multiproprietário – é fundamental para que o instituto seja regido pelo Código Civil e não pela regulação dos valores mobiliários.


[1] Cf. artigos 1.358-B e 1.358-C do Código Civil Brasileiro: “A multipropriedade reger-se-á pelo disposto neste Capítulo e, de forma supletiva e subsidiária, pelas demais disposições deste Código e pelas disposições das Leis nºs 4.591, de 16 de dezembro de 1964 , e 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor) Multipropriedade é o regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada. (Incluídos pela Lei nº 13.777, de 2018) 

[2] SILVA, Paulo Ferreira Dias da. A Evolução da CVM e do conceito de valor mobiliário. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais – RDB, ano 18, nº 67, janeiro-março 2015, Ed. Revista dos Tribunais, pp 67-109.

[3] SEC v. Howey Co. – 328 U.S. 293 (1946). Fonte: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/328/293/

[4] LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. O conceito de “security” no direito norte-americano e o conceito análogo no direito brasileiro. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro(RDM), nº 14, Ano XIII, 1974, pp. 41-60.

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[5] “Form is disregarded for substance and emphasis is… placed upon economic reality”. V. Ronald J. Coffey, The Economic Realities of the Securities: Is then a more Meaningful Formula?, 18 Western Res. L. Rev. 367, 402 (1967). Cf. LEÃES, 1974, p. 48.

[6] SILVA, 2015, p. 94.

[7] CVM. Voto condutor do julgamento do Processo CVM RJ 2007/11593, publicado em 22.01.2008. Disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/export/sites/cvm/decisoes/anexos/0004/5730-0.pdf. O Howey Test já havia sido mencionado, de forma pioneira, em decisão anterior da entidade, no julgamento do Processo CVM RJ 2003/0499, publicado em 28.08.2003. Disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/export/sites/cvm/decisoes/anexos/0001/4149-0.pdf

[8] SEC v. CM Joiner Leasing Corp. 320 US 344 (1943).

[9] Para a interpretação deste requisito, Louis Loss & Joel Seligman. Fundamentals of Securities Regulation. Austin: Aspen Publishers, 5th ed., 2004, 252-3.

[10] United Housing Foundation, Inc. v. Forman. 421 US 837 (1975).

[11] Em casos posteriores a Howey, as cortes abrandaram o requisito de que o lucro advenha exclusivamente dos esforços de terceiros, passando a permitir o envolvimento do investidor na administração do empreendimento, desde que este envolvimento não seja preponderante. E.g. Rivanna Trawlers Unlimited v. Borchard. 840 F 2d 236 (4th Cir. 1988).

[12] SILVA, 2015, p. 103.

[13] CVM. Conforme manifestação do diretor relator no item 18 do voto apresentado no julgamento do Processo CVM 19957.004122/2015-99, realizado em 12.04.2016. Disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/export/sites/cvm/decisoes/anexos/2016/20160412/0050__Voto_DGB.pdf

[14] Idem, item 22.

[15] Disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/resolucoes/resol086.html

[16] Conforme o § 3º do art. 19 da Lei nº 6.385/76: “Caracterizam a emissão pública: I – a utilização de listas ou boletins de venda ou subscrição, folhetos, prospectos ou anúncios destinados ao público; II – a procura de subscritores ou adquirentes para os títulos por meio de empregados, agentes ou corretores; III – a negociação feita em loja, escritório ou estabelecimento aberto ao público, ou com a utilização dos serviços públicos de comunicação.”

[17]Nesse sentido foi o STJ, em decisão anterior à Lei nº 13.777, de 2018: A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu, por maioria, vencido o relator, que “a multipropriedade imobiliária, mesmo não efetivamente codificada, possui natureza jurídica de direito real, harmonizando-se, portanto, com os institutos constantes do rol previsto no art. 1.225 do Código Civil” (STJ, 3ª T., REsp 1.546.165/SP, Rel. p/ Acórdão Min. João Otávio de Noronha, publicado em 06.09.2016). Ao ensejo, vale ver também SCHREIBER, Anderson. Multipropriedade Imobiliária e a Lei 13.777/18. In: Carta Forense, 03.12.2018 (https://carta-forense.jusbrasil.com.br/noticias/662310042/multipropriedade-imobiliaria-e-a-lei-13-777-18).

[18]“Art. 1.358-P.  …a convenção de condomínio edilício deve prever (…) VI – a indicação, se for o caso, de que o empreendimento conta com sistema de administração de intercâmbio, na forma prevista no § 2º do art. 23 da Lei nº 11.771, de 17 de setembro de 2008 , seja do período de fruição da fração de tempo, seja do local de fruição, caso em que a responsabilidade e as obrigações da companhia de intercâmbio limitam-se ao contido na documentação de sua contratação”.

[19] “Art. 1.358-I.  São direitos do multiproprietário, além daqueles previstos no instrumento de instituição e na convenção de condomínio em multipropriedade: (Incluído pela Lei nº 13.777, de 2018)  (…) II – ceder a fração de tempo em locação ou comodato;”.

[20]Segue uma explicação que ajuda a distinguir o direito derivado da lei (subjetivo, absoluto) do direito derivado do contrato (relativo): “Na língua portuguesa, a palavra direito assume diversas acepções, o que também ocorre com droit (em francês), com diritto (em italiano), com Recht (em alemão), com derecho (em espanhol) etc. Por essa razão, sobretudo nos sistemas jurídicos romano-germânicos, há necessidade de distinguir o chamado direito objetivo do chamado direito subjetivo. Isso não ocorre, todavia, na língua inglesa. Nos sistemas jurídicos dos países anglo-saxões, utiliza-se o vocábulo law para se referir ao direito objetivo e o vocábulo right para se referir ao direito subjetivo. Para nós, a expressão direito objetivo (law) refere-se às normas jurídicas. Os adeptos do latim dizem do direito objetivo: ius est norma agendi (direito é a norma de agir). O conteúdo do art. 1º do Código Civil, que é uma norma jurídica, tem natureza de direito objetivo, assim como o Direito Civil como um todo, por englobar um conjunto de normas. Vale lembrar que o conceito de norma abrange tanto as regras (comandos concretos) quanto os princípios (diretrizes abstratas). Já a expressão direito subjetivo (right), por sua vez, refere-se a uma faculdade incorporada à chamada esfera jurídica do sujeito em decorrência de previsão do direito objetivo. Cuida-se da faculdade de um sujeito realizar uma conduta comissiva (ação) ou omissiva (omissão) ou exigi-la de outro sujeito. Do direito subjetivo dizem os romanistas: ius est facultas agendi (direito é a faculdade de agir). Por se tratar de faculdade, o exercício efetivo de um direito subjetivo depende da vontade do próprio sujeito; ninguém pode forçar outrem a exercer direito subjetivo. Exemplo: o art. 5º da Constituição Federal de 1988 prevê o direito objetivo de propriedade: ‘todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade’. Caio, então, que compra um carro e o recebe, adquire o direito subjetivo de propriedade do veículo, o qual se incorpora à sua esfera jurídica. O direito subjetivo de propriedade lhe confere as faculdades de usar, fruir e dispor do carro, bem como de exigir que todas as demais pessoas omitam-se de usar, fruir e dispor do mencionado bem. Ou seja, o direito de propriedade concede faculdades referentes a ações e omissões. Mas, se for a vontade de Caio abandonar o veículo, então estará deixando de exercer o direito subjetivo de propriedade, e outra pessoa poderá se apropriar do bem. Essa conduta de Caio é lícita, pois o direito subjetivo se reveste em uma faculdade: pode ser exercido ou não. Aos direitos subjetivos correspondem os chamados deveres: se Orlando tem o direito subjetivo de propriedade da vaca Mimosa, então todas as demais pessoas têm o dever de não perturbar a propriedade de Orlando. Considerando a relação entre o sujeito do direito e o sujeito do dever, a esfera de operação do dever e o objeto da relação, os direitos subjetivos dividem-se ainda em direitos absolutos e direitos relativos. (…) Direitos absolutos consistem em direitos que travam uma relação jurídica entre o sujeito do direito e toda a coletividade, e incidem diretamente sobre um bem, enquanto direitos relativos consistem em direitos que operam em uma relação entre o sujeito do direito e o titular do dever correspondente, e incidem diretamente sobre um fato de um dos sujeitos.” – grifei. http://genjuridico.com.br/2020/04/30/direito-objetivo-e-direito-subjetivo/

[21]“Desenvolvido já na Roma antiga, o princípio da especialidade – lex specialis derogat legi generali – determina que a lei mais específica prevalece, no caso concreto, sobre a lei geral. Em: https://trilhante.com.br/curso/conflito-aparente-de-normas-penais/aula/principios-para-solucionar-o-conflito-aparente-de-leis-penais-2. Já critério cronológico tem por fundamento o artigo 2º, § 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que regula que norma posterior revoga a anterior: ‘A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior’” – grifei. Em: https://rodrigobezerraadv.jusbrasil.com.br/artigos/297827324/antinomia-o-conflito-aparente-de-normas-e-seus-criterios-de-resolucao

[22] Embora a decisão da CVM tenha considerado multipropriedade e time-sharing como equivalentes, diferenças entre os dois institutos foram assinaladas por vários autores. Gustavo Tepedino apontou a distinção entre o modelo adotado no Brasil e o time-sharing estadunidense: “Designa-se  como  multipropriedade,  ou  time  sharing  na  terminologia  norte-americana,  o  fracionamento  no  tempo  da  titularidade  do  imóvel  em  frações  semanais. Cada multiproprietário adquire, assim, a sua casa de campo ou de praia em determinado período do ano. O legislador brasileiro adotou, acertadamente, o modelo de unidades autônomas, individualizadas no tempo e no espaço e inseridas no regime de condomínio especial. Na matrícula referente a cada unidade constam o local e o tempo que a individualizam” (https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/359/268). Caio Calfat consignou que “no Brasil, adotamos o termo Multipropriedade quando vendemos uma propriedade em cotas, que podem variar entre 13, 26 e 52, a depender das características de cada projeto. Quem compra essa cota adquire o direito da propriedade. O fractional é a mesma coisa, mas não há a compra de direito de propriedade, e, sim, do direito de uso. O fractional seria o meio do caminho entre o time-share e a multipropriedade”(https://www.caiocalfat.com/blog/a-historia-por-tras-da-multipropriedade-do-timeshare-e-do-fractional). Já Leonardo Ugatti Peres diferenciou o time-sharing e os fractionals, considerando este último o instituto equivalente à multipropriedade por configurar um direito real de propriedade: “Diferentemente do ‘time-sharing’ (regulado pelo art. 28 do Decreto federal 7.381/10), em que se adquire o direito contratual de usufruir do serviço de hotelaria, nos ‘fractionals’ o que se adquire é o direito real de propriedade, que é partilhado entre diversos indivíduos” (https://www.migalhas.com.br/depeso/279831/empreendimentos-fractional). Diz o dispositivo legal citado: “Art. 28.  Considera-se hospedagem por sistema de tempo compartilhado a relação em que o prestador de serviço de hotelaria cede a terceiro o direito de uso de unidades habitacionais por determinados períodos de ocupação, compreendidos dentro de intervalo de tempo ajustado contratualmente. § 1o  Para fins do cadastramento obrigatório no Ministério do Turismo, somente prestador de serviço de hotelaria que detenha domínio ou posse de pelo menos parte de empreendimento que contenha unidades habitacionais hoteleiras poderá celebrar o contrato de hospedagem por sistema de tempo compartilhado. § 2o  Os períodos de ocupação das unidades habitacionais poderão ser utilizados pelo próprio cessionário ou por terceiro por ele indicado, conforme disposto contratualmente. § 3o  Os períodos de ocupação das unidades habitacionais do sistema de tempo compartilhado poderão ser representados por unidades de tempo ou de pontos. § 4o  O período de utilização das unidades habitacionais poderá ser: I – fixo, quando estipulada data específica para a sua utilização; e II – flutuante, em que não se estipula previamente o período para utilização das unidades habitacionais dentro do intervalo de tempo ajustado contratualmente” – grifei.

[23] Em: https://conteudo.cvm.gov.br/export/sites/cvm/decisoes/anexos/2019/20190422/0832__DGG.pdf

[24] Essa intenção foi informada no início do voto: “Embora a divergência tenha surgido em um caso concreto, o Colegiado foi instado a se manifestar em sede de consulta. Nessa perspectiva, parece-me que nossa análise não deve se restringir às especificidades daquele caso, cumprindo-nos também traçar diretrizes gerais que possam orientar o trabalho da área técnica em questões similares.”

[25] Quanto a esse aspecto, merece atenção o seguinte trecho da decisão em exame: “22. (…) A multipropriedade, em si só, é um regime de condomínio no qual cada um dos proprietários detém os direitos de uso e gozo do bem em uma fração de tempo determinada. A toda evidência, a simples instituição desse condomínio e a oferta pública das frações de tempo daí decorrentes não são suficientes para configurar um contrato de investimento coletivo. 23. Do mesmo modo, a estrutura jurídica utilizada para a instituição do regime de multipropriedade também não é determinante para o exame que se pretende realizar. Trata-se, ao contrário, de um elemento secundário no exame quanto à caracterização de determinado produto ofertado ao público como um contrato de investimento coletivo. Insisto: a configuração deve se basear em uma análise substancial. A ressalva é importante pois, na ausência de um regime jurídico específico, ou seja, ao menos até a edição da Lei nº 13.777/2018, os empreendedores valiam-se de diversos instrumentos para estabelecer um regime de multipropriedade no Brasil. 24. As mesmas razões fazem também com que não se possa afirmar de modo peremptório que a venda de frações de tempo em imóvel organizados no sistema de multipropriedade jamais caracterizarão um contrato de investimento coletivo. Por exemplo, tome-se os contratos de investimento coletivos que oferecem aos investidores a oportunidade de se tornarem sócios de empreendimentos hoteleiros. Após um período de intensas discussões, consolidou-se o entendimento de que os chamados condo-hotéis são contratos de investimento coletivo e, consequentemente, de que as ofertas públicas de distribuição de tais contratos devem ser realizadas de acordo com as disposições da Lei nº 6.385/1976. 25. Ora, os condo-hotéis podem ser estruturados como condomínios edilícios cujas unidades são divididas em frações de tempo, segundo o regime de multipropriedade. Nesse sentido, cabe destacar que o Colegiado já decidiu que a Instrução CVM nº 602/2018 pode ser utilizada na oferta pública de distribuição de contratos de investimento coletivo envolvendo esforços de venda de partes ideais de unidades autônomas de condomínios edilícios. Dessa forma, o fato de o fracionamento da unidade imobiliária ser eventualmente feito através do sistema de multipropriedade em nada afeta a conclusão de que se trata, no caso, de um contrato de investimento coletivo (caso ofertado publicamente).” – grifei. O presente artigo vai além desse entendimento ao demonstrar que, após a edição da Lei nº 13.777/2018, a adoção da estrutura jurídica nela prevista afasta da multipropriedade a incidência do regime dos valores mobiliários.

Dr. Paulo Ferreira Dias da Silva – Advogado no Rio de Janeiro. Professor e palestrante em temas relacionados a direito civil, empresarial, administrativo, constitucional, regulatório e mercados financeiro e de capitais. Analista de mercado de capitais da CVM. Graduado em Economia e em Direito pela USP, com especialização em administração empresarial e tributária. Especialista em Regulação do Mercado de Capitais pelo Instituto de Economia da UFRJ. Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio. Mestre em Responsabilidade Civil pela Universitat de Girona.

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