EXISTEM DIREITOS ABSOLUTOS?

Uma ideia presente no mundo jurídico é de que inexiste direito absoluto no ordenamento vigente, seja do ponto de vista constitucional, seja do ponto de vista legal. Referida ideia, com o devido respeito, não pode prevalecer. E há questões fáticas a serem abordadas que permitem entender que, de fato, há direito absolutos.

Quando alguém expressa ou escreve algo nesse sentido, entendo que conflita, por exemplo, com o direito de não ser torturado. A Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso III, revela o direito fundamental de não ser submetido a tortura[1].

Analisando o dispositivo constitucional, denota-se que o Texto Maior não conferiu ao seu intérprete espaço para mitigar, reduzir, afastar esse direito fundamental. Inclusive, é com suporte no artigo 5º, inciso III, da Constituição Cidadã, que a Lei Federal Ordinária nº. 9.455/97 prevê como crime a prática de tortura.

O texto constitucional, no seu artigo 5º, inciso XLVII, alínea “a”[2], impõe a não existência de pena de morte. Entretanto, nesse caso, apresenta uma exceção, qual seja, quando há “guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX”.

Nessa linha de entendimento, nem mesmo em caso de guerra é permitida a prática de tortura, quanto mais na vigência de um Estado Democrático de Direito.

E, com efeito, não há razão para discutir eventual mitigação desse direito, uma vez que ofenderia um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, qual seja, o da dignidade da pessoa humana, prevista no inciso III do artigo 1º da CF/88[3].

Justamente por ser fundamento do Estado Democrático de Direito, o Brasil comprometeu-se, frente aos organismos internacionais, a promover condições para inibir e coibir a prática de tortura no território nacional. Tem-se como exemplo o Decreto nº. 40, de 15 de fevereiro de 1991, o qual introduziu no ordenamento jurídico brasileiro, a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

No artigo 2º, item 1, a Convenção expressa que “Cada Estado Parte tomará medidas eficazes de caráter legislativo, administrativo, judicial ou de outra natureza, a fim de impedir a prática de atos de tortura em qualquer território sob sua jurisdição”.

Logo no item 2 do mesmo artigo, tem-se a seguinte redação: “Em nenhum caso poderão invocar-se circunstâncias excepcionais tais como ameaça ou estado de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública como justificação para tortura”.

Assim, é certo que o direito de não ser submetido a tortura, de qualquer espécie, revela-se como direito absoluto.

Outro direito que entendo ser absoluto é o direito ao silêncio, cuja previsão está contida no inciso LXIII do artigo 5º da Constituição Federal[4]. De igual sorte, possui previsão no artigo 186, caput, do Código de Processo Penal Brasileiro[5].

É assente na doutrina[6] e na jurisprudência[7] de que o interrogatório do acusado é meio de defesa, não de prova. Por essa razão, é o investigado ou acusado que detém, unicamente, a prerrogativa de manifestar se irá exercer o direito ao silêncio ou não.

Deixar que a Polícia, o Ministério Público ou o Judiciário indique que perguntas são incriminadoras ou não, em verdade, constitui esvaziamento do direito ao silêncio. Ora, se estes órgãos afirmam que tal pergunta não se revelaria incriminadora, seria adequado afirmar que a resposta, em qualquer hipótese, não poderia ser utilizada para prejudicar o investigado ou ao acusado? De igual sorte, não serviria para “prejudicar” terceiros?

A utilização da resposta em prejuízo do investigado ou do réu, quando fosse informado que a indagação não teria o condão de comprometê-los, configuraria prova ilícita e, assim, imprestável nos termos do artigo 157 do Código de Processo Penal[8].

Portanto, diante desse quadro, verifica-se que não há espaço para mitigar o direito ao silêncio, sob pena de torná-lo “letra morta”.

Por Marcus Venicius Nunes da Silva, Advogado especializado em Direito Público pela Faculdade Damásio, Membro do Grupo de Trabalho Multidisciplinar da ABA Acre/AC e sócio de serviço da Callil Advogados.


[1] Art. 5ºTodos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

[2] XLVII – não haverá penas:

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

[3] Art. 1ºA República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:

(…)

III – a dignidade da pessoa humana;

[4] LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;

[5] Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.

[6] “Daí o entendimento hoje majoritário em torno da natureza jurídica do interrogatório: meio de defesa. É verdade que, durante muito tempo, o interrogatório foi considerado meio de prova. A própria posição topográfica que o interrogatório ocupa no CPP, dentro do Capítulo III (“Do interrogatório do acusado”) do Título VII (“Da prova”) reforça esse entendimento. Além disso, antes da Lei nº 11.719/08 e da Lei nº 11.689/08, o interrogatório era o primeiro ato da instrução processual penal”. (Lima, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único / Renato Brasileiro de Lima – 4. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2016.

[7] HC 111567 AgR, Relator(a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 05/08/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-213  DIVULG 29-10-2014  PUBLIC 30-10-2014; HC 667.432/SC, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 08/06/2021, DJe 14/06/2021

[8] Art. 157.  São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.

§ 1o São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.

§ 2o Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova.

§ 3o Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente.

§ 5º O juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão.

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