Antes da resposta, vale lembrar em linhas bem genéricas que o instituto do fideicomisso prevê a transmissão de um bem da pessoa X (fideicomitente) para a pessoa Y (fiduciário), com o intuito de, depois de sua morte, de certa condição ou de um tempo, transmita esse bem para a pessoa Z (fideicomissário).
Ocorre que esse instituto é exclusivo da sucessão testamentária, conforme prevê o art. 1.951 e seguintes do Código Civil, deixando antever algumas razões básicas: a) necessidade de uma transmissão causa mortis, por não se tratar de cláusula de reversão ou de instituição de usufruto (apesar de ser possível essa instituição em testamento); b) só pode ser fideicomissário a prole eventual de alguém determinado (art. 1952, CC), e; c) impossibilidade de ultrapassar o segundo grau de fideicomissário, ou seja, não pode haver um sucessor na falta do fideicomissário (art. 1.959 CC).
A discussão da possibilidade de utilização do fideicomisso por ato inter vivos remonta longo tempo em nosso país, ultrapassando a legislação anterior do Código Civil de 1916, até o diploma legal atual.
Nos nossos dias, existe uma corrente doutrinária bastante significativa defendendo a possibilidade do fideicomisso quando estipulado em escritura de doação, citando que o fideicomisso por ato inter vivos é tão antigo que chegou a ser utilizado em Portugal no período medieval, e ainda sob a alegação de que o art. 425 do Código Civil prevê o princípio da liberdade de estipulação negocial (contratos atípicos), aduzindo ainda que o art. 4º, do Decreto-Lei nº 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) autorizaria o uso da analogia e dos princípios gerais de direito para reconhecer essa possibilidade.
Não nos cabe fazer juízo de valor para defender teses, mas simplesmente mostrar que, na prática, ainda que se encontre um tabelião de notas disposto a lavrar uma escritura nesse sentido, seguindo a inteligência da linha da corrente doutrinária acima descrita, os oficiais registradores de imóveis acabam não registrando esse título, por entenderem que ele possui uma falha técnica em seu bojo, já que o fideicomisso é um instituto muito particular do direito das sucessões, não podendo, assim, ser instituído por doação ou quaisquer outros atos inter vivos.
Por Clarindo Mourão, membro da Comissão de Direito Notarial e Registrado da ABA Rio de Janeiro
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