Por Kaio Alves Paiva
A Lei 14.478/2022, em seu art. 3º, define ativo virtual como “a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento”. excluindo: (a) moedas nacionais e estrangeiras; (b) moeda eletrônica, desde que com lastro institucional (art. 6º da Lei nº 12.865/2013); (c) instrumentos de acesso a produtos ou serviços (pontos de programas de fidelidade); e (d) representações de ativos financeiros já regulamentados.
O Decreto n. 11.563/2023, ao regulamentar a Lei 14.478/2022, delegou ao Banco Central (BCB) a competência para regular os serviços de ativos virtuais. Em resposta, o BCB lançou a Consulta Pública nº 109/2024 (com prazo até 28 de fevereiro de 2025 pelo Edital nº 116/2025), com foco na regulamentação de sociedades prestadoras de serviços de ativos virtuais (PSAVs), divididas em três modalidades (a) intermediárias: que operam a negociação e distribuição de ativos virtuais; (b) custodiantes: que realizam a guarda e custódia de ativos virtuais de terceiros; e (c) corretoras de ativos virtuais: que combinam as atividades de intermediação e custódia de ativos virtuais.
Paralelamente, a Receita Federal propôs, em Consulta Pública que se encerrou em 06.12.2024, a criação da Declaração de Criptoativos (DeCripto), com a definição mais detalhada de criptoativo como: “a representação digital de um valor ou de um direito que pode ser transferido e armazenado eletronicamente mediante o uso de criptografia e tecnologia de registro distribuído ou tecnologia semelhante”.
A proposta da RFB, através da DeCripto, sugere uma interpretação de que criptoativo seria uma espécie do gênero ativo virtual, caracterizada pelo uso de criptografia e tecnologias de registro distribuído (como blockchain) para garantir a segurança, a integridade e o registro das transações.
No entanto, a inclusão da representação de “um direito” na definição de criptoativo da RFB amplia o escopo em relação à definição de ativo virtual da Lei 14.478/2022, gerando um ponto que ainda pode ser objeto de debate quanto à sua adequação legal.
A grande questão que permeia o debate é: criptoativos devem ser considerados bens móveis, moeda estrangeira, ativos financeiros, ou uma categoria sui generis? A resposta a essa pergunta impacta diretamente a forma de tributação, as alíquotas aplicáveis e as obrigações acessórias.
Ainda que se possa argumentar que, civilmente, as criptomoedas são bens incorpóreos, o fato é que a Lei 14.478/2022 preferiu criar um regramento próprio (de “ativo virtual”), sinalizando que não se encaixam perfeitamente na moldura civil tradicional.
Por outro lado, ao definir “ativo virtual”, a lei excluiu explicitamente “moeda nacional e moedas estrangeiras” (art. 3º), sem, contudo, classificá-las formalmente como ativo financeiro, que na definição econômica e tributária usual, costuma estar associado a títulos, créditos, valores mobiliários ou aplicações financeiras disponibilizadas por instituições autorizadas e geralmente regulamentados pela CVM. Assim, em conjunto com a delegação ao Banco Central para regulamentar o setor (Decreto nº 11.563/2023), fica reforçado o entendimento de que criptomoedas não são consideradas moeda estrangeira ou ativos financeiros para fins legais e tributários no Brasil, e portanto, não se sujeitam às regras de tributação aplicáveis a operações de câmbio ou de investimentos.
Nesse sentido, pois, a Lei nº 14.478/2022 e normas complementares estão, na prática, inaugurando um regime especial para esses ativos (ditos “virtuais”) – o que, na essência, aproxima-se da ideia de bem “sui generis”, e sob este aspecto que devem mesmo ficar sujeitos às regras de ganho de capital na alienação de bens e direitos, conforme a Lei nº 8.981/95, art. 21, com alíquotas progressivas de 15% a 22,5%, tal como apontam as orientações da RFB.
Em junho de 2021, o Bitcoin se tornou moeda legal em El Salvador ao lado do dólar americano, conforme a “Ley Bitcoin. Esse fato suscitou debates sobre sua classificação como criptoativo ou moeda estrangeira. Afinal, se considerado moeda estrangeira, a tributação poderia mudar de ganho de capital para variação cambial. Esse debate, no entanto, acabou de perder relevância prática, haja vista que, em 30 de janeiro de 2025, o Parlamento salvadorenho aprovou uma reforma que retirou o status do Bitcoin como moeda oficial, tornando sua aceitação opcional para os usuários.
O que muda em 2025 (um panorama sobre a DeCripto)
Além de propor uma definição mais detalhada de criptoativo para fins de declaração, a proposta da RFB, através da DeCripto, também define: (a) criptoativo declarável, como sendo aquele “que não seja moeda digital emitida pelo BCB, produto específico de moeda eletrônica ou que não possa ser utilizado para fins de pagamento ou investimento”; e (b) criptoativo infungível: “o criptoativo não intercambiável com outro criptoativo da mesma espécie, quantidade e qualidade, ou cujo ativo referenciado também seja único e não fungível”, como é o caso dos NFTs.
A par da atualização das definições de criptoativo, a DeCripto: (a) amplia a definição de “prestadora de serviço de criptoativo” para abranger entidades que atuam como contraparte (que participa ativamente da negociação de criptoativos, comprando ou vendendo diretamente para ou do usuário), intermediárias ou que disponibilizam plataformas de negociação (art. 5º, IV); (b) detalha os serviços abrangidos, incluindo trocas, transferências, custódia, administração, participação em serviços financeiros relacionados à oferta ou venda de criptoativos e intermediação de retiradas e depósitos para execução de serviços em plataformas estrangeiras (art. 5º, V); e (c) define prestadoras de serviço que não controlam ou exercem influência significativa sobre a tecnologia, mecanismos de contrato inteligente e parâmetros de funcionamento (art. 5º, VI), as DEXs, que se enquadrem na definição de PSAV, e permitem aos usuários negociarem diretamente de suas carteiras (wallets) pessoais, diferindo das CEXs, em que há atividade do prestador do serviço com coleta de dados das transações dos usuários.
A DeCripto mantém o limite de R$ 30.000,00 mensais para fins de obrigar a prestação de informações por pessoas físicas e jurídicas em operações de criptoativos, mas agora explicitamente inclui operações efetuadas por meio de plataformas descentralizadas (art. 6º, II, b), reconhecendo a crescente relevância das DEXs no mercado de criptoativos e buscando coibir a evasão fiscal por meio dessas plataformas, eis que muitos protocolos de DEX não exigem qualquer tipo de cadastro que vincule o usuário a um CPF ou CNPJ, tornando mais difícil para o Fisco identificar quem está por trás de cada transação.
Também mantém a exigência de informação sobre endereços de carteiras apenas em caso de intimação em procedimento fiscal (art. 12) cujo descumprimento poderá resultar em penalidades, inclusive, com a possibilidade de o Fisco entender que houve ocultação de bens ou valores em criptoativos, procedendo ao lançamento de ofício a partir da presunção de ganhos ou rendimentos não declarados, acrescido de juros moratórios e de multas que podem chegar a 150% (em caso de fraude ou sonegação), além de eventual representação para fins penais.
Por outro lado, a DeCripto exige um maior detalhamento das informações a fim de fornecer à RFB um panorama mais completo das operações com criptoativos, permitindo um cruzamento de dados mais eficaz e a identificação de inconsistências ou indícios de irregularidades, de que são exemplos: (a) o procedimento de diligência, exigindo que as prestadoras de serviço de criptoativo identifiquem os titulares das operações a partir de informações detalhadas (art. 8º, I, c); (b) a diferenciação dos tipos de entrada e saída de criptoativos (art. 8º, II e III), abrangendo hipóteses como airdrop, stakin, renda de mineração e empréstimo; (c) a indicação dos ativos que serviriam de lastro quando operações envolvendo criptoativos referenciados em ativos, dificultandopráticas de fraude ou divulgação enganosa de lastro; (d) a indicação de fracionamento de criptoativo infungível (art. 8º, V); (e) o ingresso ou saída de criptoativo do Brasil, exigindo a informação sobre a movimentação internacional de criptoativos (art. 11, I); (f) a cessão temporária de criptoativos (art. 11, II); e (g) informações sobre o registro da transação do bem ou serviço para o qual o criptoativo foi utilizado como dação em pagamento (art. 11, III).
Como se percebe, a DeCripto representa uma evolução significativa em relação às INs 1.888/2019 e 1.899/2019, incluindo novas definições e abrangendo operações em DEXs, além de exigir informações mais detalhadas e foco em operações que antes podiam passar despercebidas, o que fortalece o combate à lavagem de dinheiro e evasão fiscal.
A despeito da possibilidade de sofrer alterações até sua publicação final, a minuta submetida a consulta já fornece uma clara indicação das intenções da RFB em relação à regulamentação e fiscalização do mercado de criptoativos no Brasil.
E na prática?
De saída, é fundamental ressaltar que a interpretação e a aplicação das normas tributárias podem variar de acordo com as circunstâncias específicas de cada caso e a evolução da legislação, de maneira que a consulta a um profissional especializado é sempre recomendada.
Feita a observação, eis o cenário hipotético: Maria, residente fiscal no Brasil, possuía 1 Bitcoin (BTC) adquirido em 01/01/2023 por R$ 100.000,00. Em 15/06/2024, ela decide permutar esse 1 BTC por 10 Ethereum (ETH) em uma exchange descentralizada (DEX). No momento da permuta, 1 BTC estava cotado a R$ 250.000,00, e 1 ETH estava cotado a R$ 25.000,00. No mês de junho/2024, Maria não realizou nenhuma outra operação de alienação de criptoativos.
A permuta de criptoativos é considerada um evento tributável, mesmo que não haja conversão para moeda fiduciária (como o Real). A RFB entende que a permuta configura alienação, gerando a obrigação de apurar eventual ganho de capital, conforme previsto na Instrução Normativa RFB nº 1.888/2019, art. 5º, II (lógica essa que foi mantida na DeCripto, que reforça o entendimento da permuta como alienação no art. 7º, II).
Apuração do Ganho de Capital
Valor de Alienação: R$ 250.000,00 (valor do BTC no momento da permuta, conforme art. 23 da IN 1.888/19 e art. 13 da DeCripto).
Custo de Aquisição: R$ 100.000,00 (valor pago originalmente pelo BTC).
Ganho de Capital: R$ 250.000,00 – R$ 100.000,00 = R$ 150.000,00.
Tributação: a Lei nº 8.981/95, art. 21, alíquotas progressivas para o imposto de renda sobre o ganho de capital de pessoas físicas, conforme o valor do ganho obtido. Como o ganho de Maria foi de R$ 150.000,00, aplica-se a alíquota de 15% para ganhos até R$ 5 milhões (art. 21, I, da mesma lei), sendo devido o imposto de R$ 22.500,00 (R$ 150.000,00 * 15%).
Declaração e Pagamento: Maria deverá recolher o imposto devido até o último dia útil do mês subsequente à operação (julho/2024) por meio de DARF, utilizando o código de receita 4600 (ganhos de capital na alienação de bens e direitos).
A operação também deverá ser informada na Declaração de Ajuste Anual (DAA) do ano seguinte (2025, referente ao ano-calendário 2024): na ficha “Bens e Direitos”, Maria deve informar a aquisição dos 10 ETH, utilizando o código específico para “criptoativos” e discriminando a quantidade e a cotação em reais na data da permuta. Ela também precisará dar baixa do 1 BTC que foi alienado, informando no campo “Situação em 31/12/2024” o valor “zerado”, e descrevendo a operação no campo “Discriminação”.
Ainda durante a DAA, o ganho de capital deve ser informado na ficha “Rendimentos Sujeitos à Tributação Exclusiva/Definitiva”, linha “Ganhos de Capital na Alienação de Bens e Direitos”.
DeCripto – Antes e Depois
Sob a vigência da IN 1.888/2019, Maria já era obrigada a declarar mensalmente à RFB as operações com criptoativos, incluindo a permuta, caso o valor mensal das operações ultrapassasse R$ 30.000,00, o que é o caso. A declaração era feita por meio do sistema Coleta Nacional, disponível no e-CAC.
Com a DeCripto, Maria continuará com a obrigação de declarar a operação, visto que a alienação foi superior a R$ 30.000,00 no mês, e a transação ocorreu em uma DEX (art. 6º, II, b, da DeCripto). O prazo para envio das informações permanece até o último dia útil do mês subsequente (art. 14, II da DeCripto), neste caso, também julho/2024. A principal mudança é a maior especificidade das informações exigidas, conforme mencionado no tópico anterior.
Suponha-se que, na mesma situação, a alienação do BTC tivesse sido por R$ 34.000,00, e que Maria não fez nenhuma outra operação de alienação de criptomoedas no mês. Nesse caso, ela estaria isenta do Imposto de Renda sobre o ganho de capital, pois o valor total das alienações no mês ficou abaixo de R$ 35.000,00, conforme previsto na Lei 9.250/95, art. 22, II. Ainda assim, a operação precisaria ser declarada na DAA, na ficha “Rendimentos Isentos e Não Tributáveis”, além de ser declarada a aquisição dos ETHs na ficha de “Bens e Direitos”.
Igualmente, mesmo com a isenção do IR, a operação ainda precisaria ser declarada na DeCripto, se tivesse ocorrido em uma DEX ou fora de exchanges nacionais, por superar o valor de R$ 30.000,00 (art. 6º, II, b e par. único da DeCripto).
Se a operação de permuta do exemplo da Maria (ou qualquer outra operação com criptoativos) fosse realizada em uma exchange nacional devidamente autorizada pelo Banco Central do Brasil, a obrigação de informar a operação na DeCripto, em princípio, não seria do investidor (pessoa física ou jurídica), mas sim da própria exchange (art. 6º, II, e parágrafo único, e art. 9º da DeCripto.
Vê-se que, nesse último caso, é a exchange nacional que tem o dever de coletar os dados das operações, realizar os procedimentos adequados e reportar as informações à Receita Federal por meio da DeCripto, permitindo o cruzamento das informações prestadas pelas exchanges nacionais na DeCripto com as informações declaradas pelos contribuintes na Declaração de Ajuste Anual.
Destaque-se ainda que, como observado mais acima, o processo de autorização das PSAVs está sendo definido nas Consultas Públicas nº 109/2024 e 110/2024 do BCB.
Conclusões
Em que pese praticamente superada a definição da natureza jurídica dos criptoativos como “ativos virtuais”, o fato é que sua tributação levanta inúmeros aspectos desafiadores, entre tantos outros tantos debates relevantes, como a incidência de tributo sobre as operações de mineração, staking, airdrop e stablecoins, haja vista as peculiaridades de cada uma dessas operações, o que demanda uma regulamentação adequada por parte do legislador.
Apesar das incertezas remanescentes e dos problemas que as particularidades de cada caso haverá de suscitar ao contribuinte e ao Fisco, o novo marco regulatório de 2025 oferecerá maior clareza ao estabelecer definições, obrigações e procedimentos mais precisos, contribuindo para um ambiente de negócios mais seguro, sendo o domínio dessas regras importante não apenas por evitar conflitos desnecessários perante o Fisco, mas, sobretudo, por possibilitar que criptoativos sejam utilizados de maneira estratégica, transformando riscos em oportunidades de transações exitosas.
Kaio Alves Paiva é advogado, especializado em Direito Empresarial e Tributário, Diretor da Associação Brasileira de Advoagdos no Estado do Rio Grande do Norte e sócio fundador do Escritório Dantas & Paiva Advogados Associados, com sede em Naal, RN e atuação em todo o país.