A valorização da autonomia privada na contratualização das relações familiares e sucessórias
INTRODUÇÃO
Caminhamos a passos largos rumo ao envelhecimento exponencial da população brasileira. O aumento da nossa expectativa de vida faz um convite sutil a reflexões importantes sobre as enfermidades decorrentes de doenças degenerativas que comprometem a capacidade de autogoverno do indivíduo.
Percebe-se, ainda, quando se trata de incapacidade, o interesse e preocupação das pessoas com a saúde e questões médicas, o que faz todo sentido. Todavia, tão importante quanto as questões pessoais e existenciais, eis que surgem de forma gradual no cenário, as questões patrimoniais.
Diante desse novo contexto social, onde o indivíduo entende que a sua autonomia privada ganha relevância e que os contratos passam a ser importantes ferramentas na construção de um projeto familiar e sucessório, encontramos o ambiente perfeito para falar da autocuratela.
AUTOCURATELA: UM DOCUMENTO JURÍDICO PREVENTIVO
Mas, afinal, o que é autocuratela? Resumidamente, podemos dizer que se trata de um documento jurídico preventivo feito por uma pessoa lúcida e capaz, onde são preestabelecidas questões existenciais e patrimoniais, mas que só serão implementadas em uma eventual incapacidade do declarante. Logo, uma pessoa que entre em coma após um acidente ou que seja acometida de uma doença neurodegenerativa poderia valer-se desse instrumento de autodeterminação.
Segundo Thais Câmara, é por meio da autodeterminação que os indivíduos possuem que se daria a possibilidade de administração dos interesses patrimoniais e existenciais, orientado sobre as suas escolhas de vida para serem projetadas para o futuro. Dessa forma, é por meio da promoção da autonomia privada que se pretende modular esses novos institutos, considerando que o Direito tem mudado sua perspectiva, privilegiando a autonomia do sujeito, na busca da efetividade das escolhas que deve fazer para a sua vida. [1]
Então, considerando tratar-se de instrumento de proteção patrimonial e existencial futura, é possível definir, por exemplo, quem administrará o patrimônio do declarante, quem poderá orientar o curador nos cuidados administrativos, quem será o curador patrimonial e existencial (podendo sugerir, inclusive, o que se chama da curatela conjunta fracionada), que tipo de cuidados médicos o declarante quer ou não se submeter, dentre outras questões. Naturalmente, os valores dessas despesas devem ser pagos pela receita do declarante/curatelado.
A intenção da autocuratela é deixar claro quais os desejos que o declarante quer que sejam cumpridos enquanto ele estiver vivo, porém incapaz, evitando – ou minimizando – os tradicionais e inquietantes conflitos familiares sobre quem deveria ser o curador ou como deveriam ser administradas as questões patrimoniais e existenciais do declarante.
Cabe ressaltar que embora a autocuratela não tenha previsão legal, é considerada válida e eficaz, tornando-se viável com base no princípio da autonomia de vontade, que se exterioriza através do negócio jurídico. Trata-se de uma declaração unilateral de vontade e pode ser celebrada por escritura pública ou por instrumento particular, mas, por precaução, sugere-se que haja a presença de duas testemunhas no ato para comprovar que a pessoa não foi coagida e a anexação do laudo médico atestando a sanidade mental do declarante.
Outra questão que gera questionamento é se a existência do instrumento de autocuratela seria suficiente para afastar a distribuição de ação de curatela. A resposta é não! O procedimento judicial de curatela deverá ser distribuído e a declaração será levada à conhecimento do juízo como prova da liberdade de autodeterminação do indivíduo lúcido e capaz. Porém, é possível que o juízo decida de forma diversa.
Para contextualizar, em uma decisão interlocutória recente, proferida em ação de interdição realizada no Estado de São Paulo, no processo 1100518-45.2018.8.26.0100, o juiz reconheceu o documento de autocuratela apresentado nos autos, esclareceu que a manifestação de vontade do declarante será levada em consideração, mas que a mesma não vincula o juiz, de forma que será apreciada como todas as demais provas e elementos constantes nos autos.
Uma decisão como essa joga um balde de água fria nos entusiastas da contratualização das relações familiares e sucessórias.
A verdade, porém, é que não devemos esmorecer. Afinal, a autodeterminação dos indivíduos permite um caminho mais efetivo na proteção dos seus interesses patrimoniais e existenciais pré-definidos.
CONCLUSÃO
O presente artigo teve como finalidade apresentar e debater a aplicação prática de um instrumento extrajudicial preventivo pouco conhecido, mas que tende a ganhar muita relevância nos próximos anos: seja pelo envelhecimento da população brasileira, seja pela conscientização gradual de operadores do direito e cidadãos.
NOTAS:
[1] OLIVEIRA, Alexandre Miranda [et al.]; coordenado por Ana Carolina Brochado Teixeira, Renata de Lima Rodrigues. Contratos, família e sucessões: diálogos interdisciplinares. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2019. Pag. 336
REFERÊNCIAS:
1] OLIVEIRA, Alexandre Miranda [et al.]; coordenado por Ana Carolina Brochado Teixeira, Renata de Lima Rodrigues. Contratos, família e sucessões: diálogos interdisciplinares. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2019.
2] COELHO, Thais Câmara Maia Fernandes. Autocuratela evita discussões judiciais entre familiares. IBDFAM. Disponível em https://ibdfam.org.br/noticias/6078/Autocuratela+evita+discuss%C3%B5es+judiciais+entre+familiares. Acesso em: 23 fev. 2021.
3] ROSENVALD, Nelson. Os confins da autocuratela. IBDFAM. Disponível em https://ibdfam.org.br/artigos/1213/Os+confins+da+autocuratela. Acesso em: 23 fev. 2021.
Por CRISTINA CRUZ, Membro da Comissão de Direito das Famílias e Sucessões da Associação Brasileira de Advogados – ABA-RJ e integrante do Grupo de Estudos de Advocacia Extrajudicial da CDFS ABA-RJ. Diretora Regional da Associação Brasileira de Advogados no RJ. Advogada Colaborativa e Mediadora de Conflitos com experiência jurídica e foco na atuação multiportas em Direito das Famílias, Sucessões e Direito Homoafetivo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM e do Instituto Brasileiro de Práticas Colaborativas- IBPC. Palestrante. Cocriadora do perfil jurídico @Juri_DICAS. Co-autora das obras “Advogado do Futuro” e “Seleção de Artigos Jurídicos da ABA-RJ”