Beatriz Walcher Silva Montorsi1
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo analisar a herança digital no ordenamento jurídico brasileiro. De início, a pesquisa expõe como o crescimento exponencial do uso da internet e, sobretudo, das redes sociais promoveu uma série de mudanças sociais, dentre elas a consolidação do meio virtual como forma de promoção das relações sociais, ferramenta de trabalho, meio de geração de renda e de formação de patrimônio. Conteúdos de sites e blogs, perfis de redes sociais, publicações e informações digitais alcançaram o status de patrimônio digital de seus titulares e, com a morte destes, de herança. Na sequência, são feitas considerações objetivas sobre o Direito Sucessório, à luz das espécies de sucessão e é introduzido o conceito de herança digital. O presente trabalho evidencia a falta de regulamentação legal da herança digital no direito brasileiro e a insegurança jurídica daí decorrente, bem como aborda os diversos projetos de lei existentes que visaram regulamentar o tema. O estudo se debruça, ainda, sobre a transmissibilidade do patrimônio digital, contemplando a celeuma acerca dos direitos da personalidade versus a transmissibilidade de bens insuscetíveis de valoração econômica. A pesquisa realça a importância das disposições de última vontade e dos testamentos digitais formais e informais. A relevância deste trabalho consiste em evidenciar que o Código Civil brasileiro não disciplina a herança digital, muito embora cada vez mais pessoas tornam-se adeptas ao digital e adquirem bens virtuais, de modo que, na ausência de previsão normativa, as demandas sobre a sucessão do patrimônio digital são submetidas aos Poder Judiciário.
Palavras-chave: Direito Civil; Direito das sucessões; Herança Digital.
1 Advogada
Membro da Comissão Nacional de Direito de Família e Sucessões da Associação Brasileira de Advogados – ABA Membro da Comissão da Mulher da Associação Brasileira de Advogados do Rio de Janeiro – ABA/RJ Associada do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM Pós-graduada em Direito Público e Privado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ Bacharel em Direito pela Universidade Feral do Rio de Janeiro – UFRJ.
INTRODUÇÃO
Com a globalização e a consequente expansão do uso da internet foi possível observar uma nova estruturação da sociedade, passando-se à era da “sociedade digital”. Nas sociedades informatizadas, se observa o surgimento de novas formas de interação social, um maior dinamismo na transmissibilidade das informações, a criação de múltiplos espaços de trabalho virtuais, bem como a aquisição de renda e a constituição de patrimônio por meio da internet.
O advento da rede mundial de computadores foi responsável por significativos avanços e uma série de mudanças na era contemporânea, sobretudo quando comparada com épocas passadas, onde o contato entre os indivíduos era limitado pelo aspecto físico e, em regra, o patrimônio de uma pessoa era composto por bens materiais.
Num mundo no qual as pessoas se comunicam, em grande escala, por meios virtuais, não é de causar estranheza que a internet passe a refletir aquilo que acontece no mundo físico, o que, por certo, gera impactos no âmbito jurídico e demanda a devida regulamentação legal.
Com o impulsionamento da tecnologia, as informações, os dados, postagens e conteúdos estão cada vez mais disponíveis no ambiente virtual. Por meio da internet, os indivíduos podem adquirir bens digitais como, perfis de redes sociais, contas em streaming, músicas, filmes, livros, etc. Muitos dos bens digitalmente adquiridos são dotados de valor econômico e constituem verdadeira herança, devendo ser transmitidos aos sucessores com a morte de seus titulares.
Com o advento da pandemia do Covid-19, em razão das medidas restritivas impostas, percebeu-se um crescimento exponencial da utilização de meios virtuais e, com isso, houve uma maior monetização dos bens digitais, de modo que a herança digital passou a ser um tema muito debatido na atualidade.
O cenário pandêmico impôs aos indivíduos uma série de adaptações à vida em isolamento, dentre elas a expansão das formas de trabalho virtuais, a ampliação das formas de geração de renda por meio da internet e a constituição de patrimônios digitais, sobretudo quando citamos os perfis monetizados em redes sociais. Conteúdos de sites e blogs, perfis de redes sociais, publicações e demais dados digitais passaram a ser considerados verdadeiros patrimônios dos seus titulares.
Neste sentido expõe Bruno Torquato Zampier Lacerda2:
Ao longo da vida, bilhões de pessoas irão interagir, externar seus pensamentos e opiniões, compartilhar fotos e vídeos, adquirir bens corpóreos e incorpóreos, contratar serviços, dentre centenas de outras possíveis atividades por meio da rede mundial de computadores.
Mas, com a morte de seus proprietários, como transmitir esse patrimônio aos herdeiros? O que fazer com os perfis em redes sociais após o falecimento? Qual destino deve ser dado às publicações e canais de vídeos das pessoas falecidas? O que fazer os jogos online, softwares, criptomoedas, programa de milhagens daqueles que partiram? Como proceder à sucessão dos bens digitais?
O Direito Civil Brasileiro é silente em relação a tais questionamentos, uma vez que toda essa mudança social imposta pela era digital não foi acompanhada pelo ordenamento jurídico, havendo uma enorme lacuna nesse sentido.
A temática eleita mostra-se, portanto, de elevada relevância, uma vez que imperiosa se mostra a necessidade de fomentar não só alterações legislativas, mas principalmente a criação de novas leis para disciplinar a herança digital, uma vez que, atualmente, não existem disposições a respeito do assunto.
A herança digital é uma temática em construção e, como toda inovação, impõe um verdadeiro desafio, do ponto de vista social e jurídico, dado o caráter dinâmico dos meios virtuais.
1. DIREITO SUCESSÓRIO E A HERANÇA DIGITAL
O Direito Sucessório pode ser compreendido como um conjunto de normas legais que disciplinam o patrimônio da pessoa falecida, bem como a sua transferência para os que lhe sobrevieram.
Conforme as lições de Maria Berenice Dias3:
2 LACERDA, Bruno Torquato Zampier. Bens Digitais. 1ª edição. Indaiatuba, SP: Editora Foco Jurídico, 2017, página 57.
3 DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. 7. Ed. ver., ampl. e atual. – Salvador: Editora JusPodvm, 2021, página 49/50.
Sucessão, em sentido geral e vulgar, é a sequência de fenômenos ou fatos que aparecem uns após outros, ora vinculados por uma relação de causa, ora conjuntos por outras relações. No âmbito jurídico o significado da palavra sucessão é o mesmo. É a substituição do titular de um direito, com relação a coisas, bens, direitos ou encargos. Somente no direito sucessório cabe falar de herança, o que não se confunde com sucessão, que é o ato de suceder, até porque pode ocorrer sucessão inter vivos. A sucessão é um efeito jurídico, mais corretamente, uma aquisição mortis causa. O vocábulo sucessão, tomado algumas vezes como herança, em regra, é empregado para significar a transmissão dos direitos ativos e passivos que uma pessoa falecida faz a outra, que lhe sobrevive.
O Direito das Sucessões é, em termos mais claros e sucintos, o ramo do direito que disciplina a destinação da herança das pessoas que faleceram aos seus sucessores.
Herança, por sua vez, é a universalidade que compreende os direitos e obrigações do falecido, os quais se transmitem aos seus herdeiros em razão da morte. É, em verdade, o patrimônio formado com o falecimento do de cujus, composto por ativo e passivo.
Conforme o princípio da saisine, abraçado pelo artigo 1.784 do Código Civil, com a morte ocorre a transferência imediata dos bens do falecido aos herdeiros, sendo desnecessária qualquer formalidade.
O Código Civil brasileiro disciplina dois modos de transferência da herança, ou seja, a sucessão testamentária que ocorre quando há manifestação de última vontade do de cujus, por meio de testamento, e a sucessão legítima que é a que ocorre em virtude lei.
A Legislação Civil pátria distingue, ainda, a sucessão quanto aos seus efeitos. Dessa forma, temos, em primeiro lugar, a sucessão à título universal, a qual se verificará quando houver a transferência de uma universalidade de direitos. Por outro lado, há a sucessão à título singular, na qual ocorre a transferência de um bem certo, determinado e individualizado aos sucessores, ou seja, transfere-se um legado.
A herança digital se insere no ramo do Direito das Sucessões e, nada mais é do que o patrimônio virtual deixado pelo falecido. É, em verdade, um novo instituto jurídico que compreende todo o acervo digital daquele que partiu.
Nas lições de Moisés Fagundes Lara4:
4 LARA, Moisés Fagundes. Herança digital (livro eletrônico). Porto Alegre, RS: s.c.p., 2016, página 22.
Bens digitais são instruções traduzidas em linguagem binária que podem ser processadas em dispositivos eletrônicos, tais como fotos, músicas, filmes, etc., ou seja, quaisquer informações que podem ser armazenadas em bytes nos diversos aparelhos como computadores, celulares e tablets.
A herança digital pode ser composta por bens de conteúdo econômico, a exemplo de milhagens aéreas, criptomoedas, domínios de internet, programas de pontos de bancos pelo uso de cartão de crédito, assinaturas digitais, contas em redes sociais com grande número de seguidores, entre outros. Por outro lado, pode também ser composta por bens de valor sentimental/afetivo como e-mails, conversas online, cartas virtuais, etc.
Na atualidade, com a ampla disseminação do uso das redes virtuais, é mais comum que as pessoas armazenem dados, fotos, documentos, conteúdos em geral em nuvens e aparelhos eletrônicos, do que em material físico propriamente dito, visto que o armazenamento virtual permite o acesso de qualquer lugar e em qualquer tempo.
Nesse ponto, difere-se a herança digital da herança tradicionalmente compreendida, visto que a segunda abarca tanto a transferência de bens, quanto a transmissão de dados, arquivos e informações.
Com a expansão das plataformas de armazenamento de dados, a rápida difusão das redes sociais como meio de geração de renda e os inúmeros bens digitais provenientes do mundo virtual, a tendência é que cada vez mais a herança das pessoas seja composta por bens que não têm existência corpórea, que são intangíveis e que existentes apenas de modo virtual, compondo o que chamamos de herança digital.
2. DA FALTA DE REGULAMENTAÇÃO LEGAL DA HERANÇA DIGITAL
A difusão da internet resultou em inúmeras mudanças do ponto de vista das relações humanas e do mundo jurídico, de modo que, na atualidade, o uso da internet foi absorvido pelos indivíduos de tal forma que hoje praticamente tudo é feito por meio dela.
A herança digital é um instituto jurídico recente e que vem ganhando novos contornos conforme se massifica o uso da internet e a aquisição de bens digitais pelas sociedades, demandando, portanto, a tutela do ordenamento jurídico.
A ausência de direito positivado no Brasil sobre o tema faz com que muitas sejam as dúvidas quanto à sucessão dos bens digitais, quanto à questão da privacidade das informações
virtuais dos falecidos, quanto à destinação a ser dada às publicações, conteúdos e memórias daqueles que partiram, quanto à possibilidade de manutenção das redes sociais pelos herdeiros, entre outras.
A morte põe fim à personalidade jurídica, mas dela decorrem situações jurídicas que devem ser tuteladas, o que torna imprescindível a regulamentação da matéria, sendo essencial a elaboração de normas que garantam uma maior segurança jurídica, e equacione a herança digital com a honra, intimidade e privacidade daquele que partiu.
O ordenamento jurídico não pode refletir a falta de amparo dos sucessores no que se refere ao que fora deixado pelo de cujus, sobretudo no que toca aos bens valoráveis economicamente.
O Código Civil brasileiro não traz disposições aceca da herança digital na parte de sucessões, o que é fonte de incertezas e injustiças, visto que uma questão que demanda regulamentação específica vem sendo julgada pelos nossos tribunais com base em normas gerais que regulamentam a matéria.
É latente, portanto, a necessidade de criação de Leis pelo Congresso Nacional acerca da herança digital e de sua transmissibilidade, de maneira específica e eficiente, com vistas a atender os anseios da sociedade digitalizada e trazer soluções para os conflitos decorrentes da era tecnológica, sobretudo no campo do Direito das Sucessões.
Diante do exposto, é possível concluir que a herança digital não encontra regulamentação legal no ordenamento jurídico pátrio, de modo que, ante a lacuna legislativa existente, aplicam-se normas legais do Direito das Sucessões de modo extensivo e analógico à transmissibilidade da herança digital.
A inserção dos bens digitais no Direito Sucessório é, em verdade, uma questão urgente, tendo em vista os seus muitos desdobramentos, já que a sociedade está passando por uma verdadeira digitalização.
Repise-se que o tema ora abordado é de grande relevância, pois a internet vem ganhando cada vez mais aceitação como um meio de armazenar informações pessoais e profissionais, muitas delas de expressivo valor econômico e que demandam proteção legal, sobretudo quando há o falecimento de seu titular.
3. DOS PROJETOS DE LEI SOBRE A HERANÇA DIGITAL
No Brasil, existem alguns projetos de leis com o objetivo de regulamentar a herança digital, na tentativa de sanar o atraso existente no ordenamento jurídico.
Versando sobre a matéria, podemos citar inicialmente o Projeto de Lei 4.099/20125, de autoria do Deputado Jorginho Mello, que objetivou alterar o artigo 1.788 do Código Civil Brasileiro, acrescentando-lhe um parágrafo único, com a seguinte redação:
Art. 1.788……………………………………………………………………. Parágrafo
único. Serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de contas ou arquivos digitais de titularidade do autor da herança. (NR)
O Projeto de Lei 4.099/2012 fora o pioneiro a tratar especificadamente sobre o tema do patrimônio digital.
Já o Projeto de Lei 4.847/20126, de autoria do Deputado Marçal Filho, visou acrescer o Capítulo II-A e os arts. 1.797-A a 1.797-C à Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, com a seguinte redação:
Capítulo II-A
Da Herança Digital
Art. 1.797-A. A herança digital defere-se como o conteúdo intangível do falecido, tudo o que é possível guardar ou acumular em espaço virtual, nas condições seguintes:
- – senhas;
- – redes sociais;
- – contas da Internet;
- – qualquer bem e serviço virtual e digital de titularidade do falecido.
Art. 1.797-B. Se o falecido, tendo capacidade para testar, não o tiver feito, a herança será transmitida aos herdeiros legítimos.
Art. 1.797-C. Cabe ao herdeiro:
I – definir o destino das contas do falecido;
5Projeto de Lei 4.099/2012. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1119747. Acesso em: 09/10/2022.
6Projeto de Lei 4.847/2012. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1049733&filename= PL+4847/2012. Acesso em: 09/10/2022.
- – transformá-las em memorial, deixando o acesso restrito a amigos confirmados e mantendo apenas o conteúdo principal ou;
- – apagar todos os dados do usuário ou;
- – remover a conta do antigo usuário.
Há, o Projeto de Lei nº 6.468/20197, que teve por objetivo a inserção de um parágrafo único no artigo 1.788 do Código Civil, a transferência dos conteúdos das contas e arquivos digitais do de cujus.
Também foi proposto o Projeto de Lei nº 5.820/20198, que visou alterar o artigo 1.881 do Código Civil para inserir um parágrafo 4º, com redação no sentido da definição do que seria herança digital como vídeos, fotos, livros, senhas de redes sociais e outros elementos armazenados na internet.
O Projeto de Lei nº 1.689/20219, de autoria da Deputada Alessandra Silva Ribeiro (Alê Silva) do PSL/MG, ainda em trâmite, visa alterar o Código Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, para dispor sobre perfis, páginas contas, publicações e os dados pessoais de pessoa falecida, incluindo seu tratamento por testamentos e codicilos.
O citado Projeto de Lei visa acrescentar o artigo 1.791-A ao Código Civil, com a seguinte redação:
Art. 1.791-A Incluem-se na herança os direitos autorais, dados pessoais e demais publicações e interações do falecido em provedores de aplicações de internet.
§ 1º O direito de acesso do sucessor à página pessoal do falecido deve ser assegurado pelo provedor de aplicações de internet, mediante apresentação de atestado de óbito, a não ser por disposição contrária do falecido em testamento.
§ 2º Será garantido ao sucessor o direito de, alternativamente, manter e editar as informações digitais do falecido ou de transformar o perfil ou página da internet em memorial.
§3º Morrendo a pessoa sem herdeiros legítimos, o provedor de aplicações de internet, quando informado da morte e mediante
7Projeto de Lei nº 6.468/2019. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg- getter/documento?dm=8056437&ts=1630442055675&disposition=inline. Acesso em 09/10/2022.
8Projeto de Lei nº 5.820/2019. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1829027&filename= PL+5820/2019. Acesso em: 09/10/2022.
9Projeto de Lei nº 1.689/2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2003683&filename= PL+1689/2021. Acesso em: 09/10/2022.
apresentação de atestado de óbito, tratará o perfil, publicações e todos os dados pessoais do falecido como herança jacente, consignando-os à guarda e administração de um curador, até a sua entrega ao sucessor devidamente habilitado ou à declaração de sua vacância.
Em verdade, o Projeto de Lei nº 1.689/2021 prevê a ampliação do conceito de herança contido no Código Civil, para que nele passem a estar incluídos os direitos autorais, dados pessoais e publicações e interações em redes sociais, arquivos na nuvem, contas de e- mail e sites da internet.
Conforme o texto, caso aprovado o Projeto de Lei nº 1.689/2021, o sucessor poderá requer o acesso à página pessoal do de cujus, mediante exibição do atestado de óbito, bem como poderá manter ou editar as informações digitais do falecido ou por transformar o perfil ou página da internet em memorial.
O Projeto prevê, ainda, por meio da inserção de um § 3º no art. 1.857 do Código Civil, com redação abaixo destacada, a possibilidade de se dispor em testamento acerca da vedação do acesso à página pessoal pelos sucessores, indicando que a vontade do falecido é que suas informações permanecessem em sigilo.
. Art. 1.857 ………………………………………………………………………….
………………………………………………………………………………………… § 3º A
disposição por testamento de pessoa capaz inclui os direitos autorais, dados pessoais e demais publicações e interações do testador em provedores de aplicações de internet.
Ademais, o Projeto de Lei prevê a possibilidade de testamento em formato eletrônico, desde que assinado digitalmente com certificado digital pelo falecido, o que estará disciplinado pela inserção do artigo 1.863-A no Código Civil, com a seguinte redação:
Art. 1863-A O testamento cerrado e o particular, bem como os codicilos, serão válidos em formato eletrônico, desde que assinados digitalmente com certificado digital pelo testador, na forma da lei.” (NR)
Portanto, conclui-se que, a única maneira de amenizar a insegurança jurídica no que tange à tutela da herança digital, é a aprovação pelo Senado Federal de projetos de lei acerca do tema o que representaria verdadeira evolução do ordenamento jurídico brasileiro.
4. DA TRANSMISSIBILIDADE DA HERANÇA DIGITAL: DIREITO À PRIVACIDADE VERSUS DIREITO À HERANÇA
Com o falecimento do titular, surgem uma série de controvérsias acerca da transmissão da conta, dos dados e dos bens digitais para os sucessores, havendo um misto de bens de caráter pessoal e bens de caráter patrimonial.
No entanto, deve-se deixar claro, desde já que não há nenhuma vedação legal para que aquele que assim desejar disponha em testamento sobre os seus bens digitais, sejam eles suscetíveis ou insuscetíveis de valoração econômica.
O acima exposto, trata-se na verdade da aplicação do Princípio da Legalidade, segundo o qual tudo aquilo que não é proibido por lei, é permitido.
No mesmo sentido, é possível adotar-se uma interpretação extensiva do artigo 1.857 do Código Civil10, abaixo destacado:
Art. 1.857. Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte.
§ 2o São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado.
O § 2º do referido artigo dispõe expressamente sobre as disposições de caráter não patrimonial, entre as quais podem ser incluídos os bens digitais insuscetíveis de valoração econômica.
Assim, aquele que desejar que seus bens digitais, economicamente valoráveis ou não, sejam destinados a algum herdeiro, familiar ou amigo, deverá fazê-lo por testamento, o qual deverá observar as exigências legais, como ser registrado em cartório e formalizado por um advogado.
Nesse contexto, há que se destacar, ainda, que permanece acessa na doutrina o debate acerca da destinação dos bens digitais de valor afetivo ou insuscetíveis de valoração econômica, quando não há disposição testamentária.
10 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em:
11/10/2022.
O pano de fundo do debate trata-se, em verdade, da colisão entre o direito à privacidade do falecido e de terceiros e o direito à herança dos sucessores, considerando que ambos os direitos têm guarida constitucional.
Nesse sentido, destacam-se as palavras do advogado Marcos Ehrhardt Jr., Vice- presidente da Comissão de Família e Tecnologia do IBDFAM11:
“Se a pessoa falece e os herdeiros têm acesso irrestrito ao conteúdo das contas digitais, passamos a ter um provável conflito de interesses com pessoas que mantiveram conversas com o falecido e têm direito à privacidade sobre esse conteúdo. As conversas privadas mantidas em vida, além de fotos, vídeos e áudios compartilhados, são disponibilizados a terceiros. Na hora da conversa, será que passou pela sua cabeça que outros poderiam ler aquela conversa, acessar as fotografias e os áudios trocados? Sem perder de vista que, atualmente, são comuns os envios on-line de conteúdo íntimo, de cunho sexual. O controle dessas mensagens colocaria em risco a intimidade e a privacidade de outras pessoas para além do falecido. Essa questão, além de um conteúdo ético e jurídico, precisa ser refletida sobre o ponto de vista dos limites da tecnologia. Utilizar inovações tecnológicas é bom para o desenvolvimento da sociedade, mas há de se respeitar os direitos fundamentais, como à privacidade e à intimidade”.
O direito à privacidade está no bojo dos direitos humanos e tem como fim precípuo resguardar a intimidade das pessoas, sobretudo quando pensamos no modo instantâneo em que os dados circulam nos meios virtuais, dados os avanços da tecnologia, sendo qualquer fiscalização nesse sentido muito dificultada.
A divulgação indevida de dados íntimos das pessoas pode causar enormes prejuízos, ainda que o titular dos dados já tenha falecido, devendo sempre ser ponderado que qualquer informação divulgada em meio virtual tem potencial de, com enorme rapidez, alcançar milhares de pessoas.
11 Júnior, Marcos Ehrhardt. Revista IBDFAM, v.64, agosto./setembro. 2022.
Assim sendo, a Lei Geral de Proteção de Dados, Lei Lei nº 13.709/201812, teve por escopo regulamentar o direito à privacidade, trazendo disposições acerca do tratamento de dados pessoais, inclusive em âmbito virtual, por pessoas naturais ou pessoas jurídicas de direito público ou privado, visando obstaculizar, em última análise, que a transmissão de dados via internet venha a ocasionar lesão à honra ou intimidade dos indivíduos.
Retomando a celeuma entre o direito à privacidade versus o direito à herança, levando em conta o cima exposto, alguns doutrinadores defendem que os bens insuscetíveis de valoração econômica, como fotos, vídeos, troca de mensagens, possuem caráter personalíssimo e, como os direitos personalíssimo são intransmissíveis, devem ser extintos com o falecimento do titular. Por outro lado, há os doutrinadores que defendem a transmissibilidade de tais bens, tal qual ocorre com as cartas, álbuns de fotografia, livros, CD’s e DVD’s.
Nesse sentido, destaque-se o Enunciado 40 do IBDFAM13:
Enunciado 40 – A herança digital pode integrar a sucessão do seu titular, ressalvadas as hipóteses envolvendo direitos personalíssimos, direitos de terceiros e disposições de última vontade em sentido contrário.
Note-se que o Enunciado segue a mesma linha doutrinária que distingue os direitos decorrentes da personalidade/bens insuscetíveis de valoração econômica e os direitos patrimoniais/bens suscetíveis de valoração econômica, entendendo ser cabível somente a transmissão dos últimos.
Contudo, a legislação brasileira ainda não prevê se os dados digitais desprovidos de conteúdo econômico constituem ou não em patrimônio possível de ser transmitido aos herdeiros, de modo que, na prática, quando tal questão é submetida ao Poder Judiciário, há que ser feito um sopesamento entre o direito à privacidade e o direito à herança, sendo ambos expressão da dignidade da pessoa humana.
12 BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em: 25/10/2022.
13 Disponível em: https://ibdfam.org.br/conheca-o-ibdfam/enunciados- ibdfam#:~:text=Enunciado%2040%20%2D%20A%20heran%C3%A7a%20digital,%C3%BAlti ma%20vontade%20em%20sentido%20contr%C3%A1rio. Acesso em: 27/10/2022.
5. DO TESTAMENTO DIGITAL FORMAL E INFORMAL
Desde a implantação do sistema e-notariado, os tabelionatos de notas passaram a aceitar a lavratura de testamento público por meio eletrônico, o que foi permitido pelo Provimento n. 100 do CNJ e o que é chamado de testamento digital.
Algumas plataformas de redes sociais permitem que os usuários possam lançar mão de algumas disposições de última vontade, disciplinando acerca da destinação de suas informações digitais após o falecimento, o que convencionou-se chamar de testamento digital informal.
O Facebook, por exemplo, permite que os usuários escolham um contato herdeiro, que será a pessoa que você escolhe para cuidar da sua conta se ela for transformada em memorial após o seu falecimento. Já o Instagram admite a exclusão dos perfis de pessoas falecidas, mediante solicitação feita por um familiar direto.
No âmbito jurisprudencial, é perceptível o entendimento adotado nos julgados, ante a ausência de legislação específica, em decidir as causas tomando por base os termos de uso da rede social.
AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER E INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA – EXCLUSÃO DE PERFIL DA FILHA DA AUTORA DE REDE SOCIAL (FACEBOOK) APÓS SUA MORTE – QUESTÃO DISCIPLINADA PELOS TERMOS DE USO DA PLATAFORMA, AOS QUAIS A USUÁRIA ADERIU EM VIDA – TERMOS DE SERVIÇO QUE NÃO PADECEM DE QUALQUER ILEGALIDADE OU ABUSIVIDADE NOS PONTOS ANALISADOS – POSSIBILIDADE DO USUÁRIO OPTAR PELO APAGAMENTO DOS DADOS OU POR TRANSFORMAR O PERFIL EM “MEMORIAL”, TRANSMITINDO OU NÃO A SUA GESTÃO A TERCEIROS – INVIABILIDADE, CONTUDO, DE MANUTENÇÃO DO ACESSO REGULAR PELOS FAMILIARES ATRAVÉS DE USUÁRIO E SENHA DA TITULAR FALECIDA, POIS A HIPÓTESE É VEDADA PELA PLATAFORMA – DIREITO PERSONALÍSSIMO DO USUÁRIO, NÃO SE TRANSMITINDO POR HERANÇA NO CASO DOS AUTOS, EIS QUE AUSENTE QUALQUER CONTEÚDO PATRIMONIAL DELE ORIUNDO – AUSÊNCIA DE ILICITUDE NA CONDUTA DA APELADA A ENSEJAR RESPONSABILIZAÇÃO OU DANO MORAL INDENIZÁVEL – MANUTENÇÃO DA SENTENÇA – RECURSO NÃO PROVIDO (TJ-SP – AC: 11196886620198260100 SP 1119688-
66.2019.8.26.0100, Relator: Francisco Casconi, Data de Julgamento:
09/03/2021, 31ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 11/03/2021).
A continuidade dos dados digitais na rede mundial de computadores após a morte do usuário, como espécie de manutenção da vida digital, pode ser solucionada por medidas que levem em consideração, em primeiro lugar, a vontade do titular da conta, que, em vida, pode escolher pela transformação de seu perfil em um memorial ou pela extinção de sua conta.
Assim sendo, além do testamento previsto no Código Civil, outra medida para que o usuário disponha sobre a destinação dos seus bens digitais é fazer uso do chamado testamento digital informal nas próprias plataformas das redes sociais.
Na hipótese de ausência de um testamento convencional ou digital formal ou informal, não resta outra alternativa para os herdeiros do que recorrer ao Poder Judiciário para que este decida sobre a sucessão do patrimônio digital do falecimento.
Muito embora o todo acima exposto, a sociedade brasileira ainda é muito atrasada em termos de planejamento sucessório, sendo enraizada a crença de que testamento é coisa de gente rica.
Assim, ante a inexistência de ato de disposição de última vontade, cada vez mais demandas acerca da herança digital serão submetidas ao Poder Judiciário, ficando a cargos dos julgadores decidirem caso a caso o destino a ser dado ao patrimônio digital deixado por alguém.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo se propôs a fazer uma análise sobre a herança digital no ordenamento jurídico brasileiro e a reforçar a necessidade da criação de leis que disciplinem o tema, tendo em vista que a falta de previsão legal sobre o instituto no Código Civil gera grande insegurança jurídica e demonstra o descompasso entre as leis e o evoluir da sociedade. O direito deve acompanhar as transformações sociais, bem como tutelar as controvérsias daí decorrentes, garantindo que haja segurança jurídica para os cidadãos e para
os operadores do direito.
A consolidação do uso em massa da internet provocou modificações sociais e, ao mesmo tempo, fez emergir novas situações fáticas que têm repercussão no âmbito jurídico e tornam-se merecedoras da proteção estatal, por meio de uma legislação específica.
O Direito Sucessório passou a contar com uma nova modalidade de patrimônio em razão do avanço tecnológico, sendo este composto pelos bens digitais de um usuário que se encontra em rede digital.
Esta realidade implica em uma verdadeira transformação, pois impõe desafios para o Direito, passando este a ter que regular situações ainda pouco vivenciadas, porém que demandam uma solução a ser aplicada na prática.
Na atualidade, publicações, postagens, conteúdos digitais possuem valor econômico e, assim sendo, alcançaram o status de patrimônio não só dos vivos, mas sobretudo daqueles que partiram.
A herança digital é, portanto, todo esse patrimônio digital deixado pelo falecido, seja ele dotado de valor econômico ou não e que carece de regulamentação quando se trata da sua transmissão causa mortis aos sucessores.
Muito embora a ausência de previsão legal sobre a herança digital no ordenamento jurídico pátrio e suas implicações, é perfeitamente possível a transmissão dos bens digitais aos herdeiros, sejam eles de valor econômico ou não, fazendo o uso de interpretação extensiva das regras de direito sucessório constantes no Código Civil.
Adotando-se uma interpretação extensiva do artigo 1.857, caput e § 2º do Código Civil, percebe-se que é admitido que aquele que desejar pode inserir em seu testamento disposições sobre bens de caráter não patrimonial, entre os quais podem ser incluído os bens digitais insuscetíveis de valoração econômica.
No entanto, os bens digitais de natureza existencial, em razão de seu caráter personalíssimo, acabam suscitando maiores reflexões, quando o de cujus não deixa testamento, dividindo-se a doutrina entre os que não admitem a possibilidade de transmissão dos bens existenciais aos herdeiros caso não haja disposição de última vontade, resguardando- se os direito da personalidade do falecido e aqueles que defendem o contrário.
A cultura brasileira ainda é muito relutante no que toca à questão do planejamento sucessório, sendo a morte ainda vista como um tabu, embora seja um evento biológico e natural, razão pela qual a grande maioria das pessoas não lança mão dos aos dedisposições de última vontade.
Assim, como alternativa, em razão da praticidade, sobretudo em razão da pandemia do Coronavírus, vem se observando o aumento do número de usuários de redes sociais que
utilizam os termos de uso das redes para dispor sobre a destinação dos seus perfis, bem como de eventuais bens digitais, o que vem sendo chamado de testamento digital informal.
Ante a ausência de disposição legal acerca da herança digital e a ausência de testamento, não resta outra solução a não ser submeter a questão da sucessão dos bens digitais à apreciação do Judiciário, o qual julga mediante a análise de caso a caso, no entanto há uma forte tendência de julgar as causas tomando por base os termos de uso da rede social.
Debruçar-se sobre o instituto da herança digital é de extrema importância, pois o tema é de relevância geral, principalmente quando levamos em consideração que o avanço tecnológico faz com que a sociedade caminhe para uma imersão total na era digital.
Conclui-se, portanto, que é imprescindível a elaboração de uma legislação especifica a fim de incluir a herança digital no direito sucessório brasileiro, tendo em vista que as demandas judiciais sobre o tema tendem a aumentar cada vez mais e que há que se resguardar a proteção da intimidade e vida privada do falecido, pois, não raro, a transmissão da herança digital encontra como óbice a privacidade do falecido.
REFERÊNCIAS
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