Por Priscilla Machado*
Recentemente observamos várias notícias de pessoas com deficiência e idosos que tiveram seus planos de saúde cancelados unilateralmente pela operadora de saúde da qual eram beneficiários.
Tal cancelamento ocorre de forma legal, com previsão em contrato estabelecido entre as partes no momento da contratação do plano. Porém, o questionamento que fica é: isto não contraria a legislação vigente, princípios basilares do Direito e direitos fundamentais?
Vamos analisar o cenário em que esse imbróglio está inserido.
CANCELAMENTO UNILATERAL
O cancelamento unilateral decorre de uma previsão contratual, sendo da ciência de ambas as partes – que leram e assinaram tal contrato – que isto poderia ocorrer por vontade de uma ou de outra parte.
Desta forma, a operadora de saúde pode realizar o cancelamento unilateral do plano de saúde sem justificava se houver previsão no contrato que ampare tal rescisão.
Entretanto, sabe-se que tal contrato estabelecido de forma prévia é um termo pronto e genérico, elaborado pela operadora de saúde impondo as suas condições, que devem ser aceitas ou não por aquele que quer ser seu beneficiário.
Não há uma discussão sobre as cláusulas do contrato, há apenas duas opções: aceitar todas as imposições que a operadora de saúde estabelece ou não tornar-se seu beneficiário.
Assim, o contrato é estabelecido em sua totalidade a todos os possíveis clientes e estes (clientes) precisam concordar com todas as condições ali estipuladas para que possam celebrar tal contrato e assim tornarem-se beneficiários daquele plano de saúde.
A operadora não pode impor condições que desrespeitam a legislação vigente, inclusive tal cláusula pode ser considerada como abusiva.
Nos últimos meses, tem sido noticiado o aumento do número de casos em que as operadoras de saúde realizam o cancelamento unilateral do plano de saúde de acordo com a referida previsão contratual, ou seja, por vontade unilateral da operadora de saúde e – conforme consta em contrato – o fazem sem justificativa, apenas amparado na possibilidade de fazê-lo vez que é previsto contratualmente.
Isto vem ocorrendo especificamente com as pessoas que necessitam utilizar o plano de saúde de forma recorrente, devido às necessidades médicas que possuem, em especial idosos e pessoas com deficiência.
Ao realizar o cancelamento de forma unilateral, sem motivo que justifique tal cancelamento, apenas baseado na vontade de não mais prestar o serviço a esta pessoa específica, a operadora de saúde coloca o beneficiário do serviço que presta em uma situação de preocupação – e até desespero –, tendo em vista que mudará todo o cenário de um tratamento que vinha sendo realizado ao longo de meses ou até mesmo anos e que se faz necessário em prol da saúde do beneficiário.
CONTRATAÇÃO
A pessoa que procura uma operadora de saúde para a contratação de um plano de saúde – que pode ser uma pessoa que pouco o utiliza ou pode ser uma pessoa que o utiliza de forma recorrente – deve obter a proposta de acordo com os parâmetros oferecidos de modo genérico e não uma análise da sua utilização para saber se será aceito ou não pela operadora de saúde.
Tal atitude é tão absurda quanto exclusiva e discriminatória.
Comparando com outro ramo do mercado para facilitar a compreensão de tamanha discriminação, seria como um restaurante que atende em sistema de rodízio colocasse um funcionário na porta para analisar os clientes que tem propensão a comer mais e não os deixasse entrar, pois ainda que pagassem o mesmo que os demais eles gerariam menos lucro ao restaurante.
Como estamos diante de uma relação de consumo, em que a operadora de saúde presta serviço ao beneficiário, é aplicável a legislação consumerista.
Diante dessa informação, paira uma dúvida: não seria uma prática abusiva recusar a prestação de serviços a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento?
Basta ler o nosso Código de Defesa do Consumidor e veremos que a operadora de saúde age contra a lei ao escolher a quem quer prestar o serviço que oferece.
Ademais, a Lei dos Planos de Saúde é clara ao prever: “em razão da idade do consumidor, ou da condição de pessoa com deficiência, ninguém pode ser impedido de participar de planos privados de assistência à saúde.”
Nesse sentido, pessoas idosas, pessoas com deficiência ou com doenças preexistentes não podem ser impedidas de tornarem-se beneficiárias de um plano de saúde por vontade unilateral da operadora de saúde.
Sobre este tema o regulamento da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) assim dispõe: para vínculo de beneficiários aos planos privados de assistência à saúde coletivos por adesão ou empresarial não serão permitidas quaisquer outras exigências que não as necessárias para ingressar na pessoa jurídica contratante.
A operadora de saúde não se limita as exigências que a lei prevê, ela vai além, a operadora de saúde nega prestar serviço para pessoas que utilizem mais o plano, impedindo que estas pessoas venham a contratar tal plano, por ter notícia de que aquela pessoa irá realizar grande uso dos serviços contratados.
Assim, a operadora de saúde escolhe aqueles que irá atender de acordo com critérios internos, desrespeitando o ordenamento jurídico vigente, excluindo e discriminando pessoas.
SOCIALIZAÇÃO DOS CUSTOS
A teoria da socialização dos custos já foi utilizada como base para proteger o direito à educação de pessoas com deficiência, eximindo-as de cobranças extras e diferenciadas por estabelecimentos de ensino.
No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5357 – em que era questionada a constitucionalidade do Artigo 28, §1º e do caput do Artigo 30, ambos da Lei Federal 13.146/2015, que é a Lei Brasileira de Inclusão à Pessoa com Deficiência – o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela socialização dos custos.
A socialização dos custos é relativizar o possível prejuízo que possa ser causado ao avaliar os gastos com um cliente especificamente em prol dos lucros obtidos com a coletividade, de forma que os gastos acima da média que um cliente gera devem ser integrados à soma total de gastos e socializado.
Deste modo, a empresa continua obtendo lucro, pois o gasto visto como acima da média ao visualizar aquela pessoa de forma específica, não é significativo ao ser analisado dentro do conjunto e a empresa continua a ter lucro ao observar o todo.
As escolas devem operar dessa forma, sem cobrar valor diferenciado dos alunos com deficiência, seja em mensalidade, uniforme diferenciado, material adaptado, taxa extra ou qualquer outro.
As operadoras de saúde também devem operar dessa forma, sem cobrar valores diferenciados das pessoas em decorrência de enfermidades que aumentem a utilização dos serviços.
Há a proibição legal de impedir a matrícula de aluno com deficiência, inclusive utilizando a ultima ratio para impedir tal ação, prevendo a negativa de matrícula em razão da deficiência como crime.
Nesse sentido, cabe ao Poder Legislativo editar lei penal que ampare o direito à saúde, visando impedir que as operadoras de saúde neguem a entrada de beneficiários em planos de saúde de forma injustificada.
DIREITO Á SAÚDE
Trata-se de um direito fundamental, estabelecido pela Constituição Federal Brasileira como direito social, o direito à saúde inerente a todo e qualquer indivíduo deve ser protegido pelo Estado.
É crime negar a matrícula de um aluno em razão da deficiência. Deveria ser crime negar a contratação de um plano de saúde em razão da deficiência?
É crime discriminar a pessoa em razão da idade ou da deficiência. Seria discriminação em razão da deficiência ou da idade negar a contratação de um plano de saúde por este motivo?
Aqui se encaixa a socialização dos custos para que pessoas com deficiência e pessoas idosas também possam ter acesso aos planos de saúde em igualdade de condições com as demais pessoas.
A igualdade de condições e oportunidades que a legislação busca é construída diariamente com a eliminação de barreiras e obstáculos existentes na sociedade. Impedir pessoas de contratar um plano de saúde é um obstáculo que impede a igualdade de condições e oportunidades.
A socialização dos custos visa a inclusão dessas pessoas e apesar de ter sido mencionada pelo nosso Supremo Tribunal quando se discutia o acesso à educação, é certo que também deve ser implementada no acesso à saúde.
Conclusão
Sabe-se que a operadora de saúde realiza a seleção de risco antes de autorizar a contratação de um plano de saúde. Porém, é certo que tal prática é discriminatória e vedada por diferentes legislações que vigoram em território brasileiro, a saber: Código de Defesa do Consumidor, Lei dos Planos de Saúde e normas da Agência Nacional de Saúde Suplementar.
É certo que a empresa é criada para gerar lucro, por isso planos de saúde são tão caros, porque é preciso que haja um lucro ainda que a pessoa venha a utilizá-lo em demasia. Entretanto, a socialização dos custos – mencionada na jurisprudência do STF – é uma realidade a ser implementada, principalmente quando temos uma sociedade comprometida com a inclusão de todos.
Para operar em território brasileiro é necessário que a empresa se submeta a legislação pátria e exerça suas atividades de acordo com o ordenamento jurídico vigente. Ao discriminar idosos e pessoas com deficiência na contratação de planos de saúde a empresa demonstra que não obedece a leis vigentes e pratica a discriminação – que a lei tenta coibir.
Priscila Machado é pós-doutora, Membro da Comissão Nacional da Mulher da Associação Brasileira de Advogados e Presidente da Comissão Nacional de Direito para Pessoas com Deficiência.