Resumo: A Teoria do Desvio Produtivo significa que o tempo produtivo perdido pelo consumidor ao tentar resolver conflitos ocasionados pelos fornecedores na prestação do produto ou serviço é passível de indenização. Este estudo possui como objetivo principal analisar como se configura essa Teoria e como ocorre a sua utilização nas decisões judiciais em relações de consumo e a sua aplicação como fundamento para pleitear indenizações na esfera trabalhista. Para tanto, fora realizada pesquisa bibliográfica com o uso de doutrinas e jurisprudências a luz do princípio da dignidade da pessoa humana.
Palavras-chave: Desvio Produtivo. Dano Moral. Vulnerabilidade. Direito do trabalho. Direito do Consumidor.
Sumário: 1. Momento em que pode ocorrer a Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor 2. O que é a Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor e onde foi publicada, 3. A Teoria do Diálogo das Fontes 4. A aplicação por analogia da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor na seara trabalhista 5. Julgados 6. Conclusão 7. Bibliografia.
1 – EM QUE MOMENTO PODE OCORRER A TEORIA DO DESVIO PRODUTIVO DO CONSUMIDOR
Na busca de seus direitos violados, o consumidor dispende um tempo vital em que poderia estar realizando atividades diversas. Porém, em razão de falhas do fornecedor, esse consumidor precisa dispor desse tempo para a solução de sua dor, gerada pela má prestação de serviço ou por vício do produto. É nesse momento que incide o desvio produtivo do consumidor.
Conforme alude o autor Marcos Dessaune, em diversas palestras pelo País, o tempo é um fenômeno da natureza, se dividindo em tempo vital e tempo existencial. Pode ser compreendido como tempo físico (objetivo, tempo cronológico, como fato jurídico stricto sensu) e tempo pessoal (subjetivo, tempo duração, bem jurídico tutelado como direito de personalidade e direito à vida).
Já os recursos produtivos são aqueles essenciais para exercer atividades existenciais, como tempo e competências.
Deve-se enfatizar que o tempo é um recurso produtivo limitado, não acumulável e não recuperável. E não se consegue realizar ao mesmo tempo tarefas excludentes entre si, como descansar e reclamar; aguardar entrega em casa e trabalhar fora. Ocorrendo um dano ao bem jurídico tempo que é desperdiçado, há um prejuízo existencial – o dano.
O tempo possui as seguintes características: é finito – a expectativa de vida no Brasil é de 76 anos (equivalente a 28 mil dias ou 660 mil horas); é inacumulável e é irrecuperável, ou seja, a atividade adiada hoje vai suprimir ou adiar outra atividade futura.
Como exemplos elencados na obra de Dessaune, com base na Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, temos a fila bancária, as incessantes ligações de telemarketing ofertando produtos, os inúmeros protocolos de reclamação gerados por práticas abusivas, defeitos em produtos e cobranças indevidas por serviços de telefonia ou violações cometidas pelos fornecedores – que são a ponta do iceberg do sofrimento do consumidor.
A falta de zelo por parte do fornecedor ocorre em afronta os preceitos do Código de Defesa do Consumidor – CDC em seu Capítulo II, artigo 4º quanto à Política Nacional de Relações de Consumo; e do Capítulo III, especialmente do artigo 6º, que trata dos direitos básicos do consumidor, também previstos na Constituição Federal vigente. Muitas também são as violações perpetradas pelos fornecedores quanto à hipossuficiência do consumidor, explicitamente vedadas pelo artigo 39 do CDC.
Deste modo, torna-se essencial compreender o cerne da tutela do consumidor para mitigar a desproporção de forças entre as partes da relação consumerista.
Neste artigo, traçaremos um paralelo entre a relação consumerista e a relação de trabalho, em que a parte forte é o empregador e a parte vulnerável é o trabalhador, aplicando, na seara trabalhista, por analogia, essa nova teoria consumerista.
2 – O QUE É A TEORIA DO DESVIO PRODUTIVO DO CONSUMIDOR E ONDE FOI PUBLICADA:
A Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor surgiu a partir de experiências do advogado Marcos Dessaune como consumidor, na busca de direitos que eram violados. Tais vivências deram origem à obra “História de um Super Consumidor” e ao “Código de Atendimento ao Consumidor (CAC 2017)”, lançados pelo autor. No aperfeiçoamento de sua busca pelo respeito aos seus direitos, a pesquisa aprofundou-se, nascendo ali sua aclamada teoria, publicada originalmente em 2011 e, de forma aprofundada, em 2017 em 2ª edição.
Segundo Dessaune (2017, p. 247), a base para a sua teoria se ampara no conceito de tempo como “tempo vital e as suas atividades existenciais – como trabalho, estudo, descanso, lazer, convívio social e familiar”.
O autor, num conceito sintético do desvio produtivo do consumidor, aponta que este “é o fenômeno socioeconômico que se caracteriza quando o fornecedor, ao atender mal, criar um problema de consumo potencial ou efetivamente danoso e se esquivar de responsabilidade de saná-lo, induz o consumidor carente e vulnerável a despender seu tempo vital, existencial ou produtivo, a adiar ou suprimir algumas de suas atividades geralmente existenciais e a desviar as suas competências dessas atividades, seja para satisfazer certa carência, seja para evitar um prejuízo, seja para reparar algum dano, conforme o caso” (DESSAUNE, 2017, p. 357).
Conforme noticia o Portal Consultor Jurídico (ConJur)[1], no artigo “Teoria do desvio produtivo é um dos temas de série sobre 30 anos do STJ”, a teoria inovadora de Dessaune foi confirmada em 2018 em 13 decisões monocráticas de ministros do STJ, e tal é a sua inovação que vem transformando a antiga jurisprudência brasileira, conhecida como a “jurisprudência do mero aborrecimento”.
O ConJur[2] noticia ainda que a Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-RJ distribuiu uma petição inicial ao TJRJ pedindo sumulação da teoria do desvio produtivo do consumidor em dezembro de 2019, após inúmeras decisões utilizando a referida teoria nos diversos tribunais do país.
Em recente julgado do TJSP, o relator aponta que
“A teoria do desvio ganhou notoriedade com a doutrina de Marcos Dessaune. Consiste na indenização pela perda do tempo livre, diante de uma situação de mau atendimento, desviando-se o consumidor de suas competências com o objetivo de resolver problema criado pelo próprio fornecedor. É, pois, consagradora do direito constitucional à proteção do consumidor (art. 5º, XXXII, e art. 170, V, da Constituição Federal), assim como à proteção contra práticas comerciais abusivas (art. 6º, IV, do Código de Defesa do Consumidor), à efetiva prevenção e reparação aos danos patrimoniais e morais (art. 6º, VI, do Código de Defesa do Consumidor), e aos deveres anexos de proteção, cuidado e cooperação, decorrentes da boa-fé objetiva.”
(TJ-SP – AC: 10465560320198260576 SP 1046556-03.2019.8.26.0576, Relator: Alfredo Attié, Data de Julgamento: 11/09/2020, 27ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 11/09/2020)
Conforme nos explica Dessaune, “o tempo vital, existencial ou produtivo da pessoa consumidora, enquanto suporte implícito da existência humana, isto é, da vida, que dura certo tempo e nele se desenvolve, e enquanto bem finito individual e capital pessoal que, por meio de escolhas livres e voluntárias, pode ser convertido em outros bens materiais e imateriais, é tanto um dos objetos do direito fundamental à vida – ou seja, um bem jurídico constitucional – quanto um atributo da personalidade tutelado no rol aberto dos direitos da personalidade. Ademais, o tempo vital ou existencial é um recurso produtivo limitado – necessário para o desempenho de qualquer atividade – que não pode ser acumulado nem recuperado ao longo da vida das pessoas. No Brasil, o tempo total de vida médio de uma pessoa que nasceu em 2015 é de 75,5 anos, 27.557 dias ou 661.380 horas”.
Para o autor, quando há submissão do consumidor ao “modus solvendi abusivo do fornecedor”, despendendo o seu “tempo vital, existencial ou produtivo” a fim de resolver um “problema de consumo potencial ou efetivamente danoso ou para evitar ou para reparar o prejuízo decorrente dele”, se dá a perda definitiva de uma parcela desse tempo vital de vida, o que configura “um prejuízo de natureza existencial com efeitos individuais e potencial repercussão coletiva”. Enfatiza ainda, que tal dano é indenizável in re ipsa[3].
Para Dessaune[4], “o dano extrapatrimonial decorrente do desvio produtivo do consumidor é autônomo em relação ao dano moral tradicional”, cabendo indenização cumulativa.
Em recente julgado do TJRJ, o dano moral fica caracterizado pela perda de tempo do consumidor para resolver problema de responsabilidade do fornecedor, como se aduz abaixo:
RELAÇÃO DE CONSUMO. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. TOI LAVRADO DE FORMA IRREGULAR. DANO MORAL CONFIGURADO. TEORIA DO DESVIO PRODUTIVO. Irregularidade constatada sem a ciência ou participação da parte autora, que resultou na cobrança de consumo recuperado. Apelação da parte ré contra a sentença que desconstituiu o TOI e fixou R$ 7.000,00 a indenização a título de dano moral. Termo de Ocorrência de Irregularidade que, por si só, não tem a presunção de veracidade, devendo ser observados o contraditório e a ampla defesa. Dano moral caracterizado. Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, através da qual o fato do consumidor ser exposto à perda de tempo na tentativa de solucionar amigavelmente um problema de responsabilidade do fornecedor e apenas posteriormente descobrir que só obterá uma solução pela via judicial, consiste em lesão extrapatrimonial. Precedentes do STJ e TJRJ. (…). Recurso conhecido e parcialmente provido.
(TJ-RJ – APL: 02864453920178190001, Relator: Des(a). JDS RICARDO ALBERTO PEREIRA, Data de Julgamento: 19/08/2020, VIGÉSIMA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 14/09/2020)
O consumidor, ao ser indevidamente prejudicado, perde tempo vital para solucionar uma demanda que não deveria ter ocorrido. O Judiciário tem acolhido a tese de desvio de tempo produtivo do consumidor por violações recorrentes dos fornecedores na venda de produtos, na cobrança indevida ou na má prestação de serviços.
O art. 186 do CC/2002 diz que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”
Assim, também amparada pela legislação civil, a reparação do ilícito na seara consumerista merece acolhimento do Judiciário. Tal reparação afeta outras áreas do direito, notadamente a área trabalhista.
Fica evidente que, com o entrelaçamento da legislação vigente, pode-se traçar o movimento analógico que conecta a vulnerabilidade de consumidores e trabalhadores frente às partes com poder na relação, qual sejam, fornecedores e empregadores.
Pode-se, assim, de forma a corroborar esse entendimento, utilizar a abordagem trazida ao Brasil em 2003 por Cláudia Lima Marques da Teoria do Diálogo das Fontes (com base nas pesquisas de Eryk Jayme) como amparo ao uso analógico da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor na seara trabalhista.
3 – A TEORIA DO DIÁLOGO DAS FONTES:
Defende Carlos Alexandre Moraes, em artigo[5] de 2018, que a teoria do diálogo das fontes é uma formulação teórica relativamente nova (1995) e que inova na “realização e aplicação do direito para a solução orientada de possíveis conflitos de leis” visando a proteção dos direitos fundamentais.
Para o autor, a LINDB em seu artigo 4o ampara o uso da Teoria do Diálogo das Fontes em caso de lei omissa, podendo-se aplicar outra lei com base na analogia, costumes e princípios gerais do direito. Ainda tratando desse entrelaçamento de normas, Moraes aponta que o CDC possui mandamento constitucional e se adequa às situações criadas por novas formas de produção, venda e entrega de produtos e serviços, diminuindo o desequilíbrio entre as partes da relação de consumo.
Aponta ainda o autor que o consumidor vulnerável deve ser defendido em lei específica com a aplicação da teoria do diálogo das fontes, ainda mais se tuteladas por preceitos constitucionais, como a dignidade da pessoa humana.
Assim, com amparo na Teoria do Diálogo das Fontes, que faz a aplicação da Constituição Federal e do Código Civil com o Código de Direito do Consumidor, a aplicação por analogia da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor na seara trabalhista equipara o trabalhador ao consumidor e o empregador ao fornecedor em diversos aspectos.
No artigo “O ônus do tempo no processo: diálogos pela efetividade da tutela de evidência e a proteção do tempo do consumidor”[6], Laís Bergstein defende que “tempo é valor” e como tal merece a tutela da ordem jurídica visto ser a vulnerabilidade primeira do ser humano, que é a sua condição de mortalidade e finitude. O tempo é um recurso como qualquer outro, disponível para uso, mas irrepresável, irrepetível e irrecuperável. Assim, se configura o tempo em bem jurídico[7] de natureza sui generis: particular, infungível, indisponível, incorpóreo, essencial, indivisível e não suscetível à apropriação ou a atos de comércio, conforme concepção de IHERING (2000: p. 27;94), citado pela autora.
O tempo do consumidor é tratado como um bem com relevância jurídica por se reconhecer nele um valor que merece a tutela do ordenamento jurídica, principalmente se a espera prolongada para uma solução for injustificada, o que denota desídia do parceiro contratual. O tempo tem valor modificado a partir da ocorrência de novas formas de lazer, comunicação, aquisição de bens por meios eletrônicos e também de trabalhar. O mercado de trabalho, com a adoção de novos modelos laborais, sob nova ótica e novos valores, prioriza o intelecto que substituiu a força bruta, abrindo espaço para o uso do tempo em novas aplicações mentais e no uso de tecnologias de comunicação instantânea, transpondo barreiras territoriais ou linguísticas. Há uma diferenciação do tempo quando usado nas redes computacionais em relação ao tempo cronos. Para a autora, os avanços tecnológicos não só encurtaram distâncias, mas também amplificaram o volume de atividades agregadas, gerando uma emergência nunca vista entre os indivíduos da pós-modernidade, (BERGSTEIN, 2020: pp. 255-257).
Esse imediatismo desenfreado afeta não só a vida das pessoas, mas principalmente a seara trabalhista, em que os prazos se estreitam e as demandas se avolumam e requerem respostas “para ontem”. De tal sorte que muitas violações são perpetradas no teletrabalho, na realização multitarefa e nos desvios e acúmulos de função, o que afeta o desempenho de inúmeros trabalhadores e o adequado tratamento dado pelas empresas a seus colaboradores, empregados ou demitidos.
Com fulcro ainda nos preceitos constitucionais, há que se combater a violação de direitos trabalhistas. É o que será detalhado a seguir.
4 – A APLICAÇÃO POR ANALOGIA DA TEORIA DO DESVIO PRODUTIVO DO CONSUMIDOR NA SEARA TRABALHISTA:
O trabalhador é uma das partes da relação trabalhista, tal como o consumidor é parte na relação de consumo. Apresentam, consumidor e trabalhador, muitas vezes, uma hiper vulnerabilidade ao serem também integrantes de parcelas da sociedade com espectros de vulnerabilidade somados – como idosos, doentes, analfabetos.
Ambos, em relação a seus pares (empregador e fornecedor, respectivamente) são hipossuficientes clássicos: têm menor poder na relação, com desconhecimento técnico, de leis, de portarias, de mecanismos de controle, de produção ou de gestão.
Em resumo, a supremacia de uma das partes em detrimento de outra parte (que é vulnerável) é a base para a aplicação analógica da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor e de seus institutos à relação trabalhista.
A Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor embasa, analogicamente, a concessão de indenizações in re ipsa aos trabalhadores que comprovam a perda de tempo vital para a solução de problemas gerados pela má gestão ou desídia do empregador na relação trabalhista.
Está evidente que a afronta a princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana e a boa-fé objetiva, dá suporte às reclamações trabalhistas que eclodem no Judiciário, com amparo na teoria do desvio produtivo do consumidor, que por analogia se torna “teoria do desvio produtivo do trabalhador”.
A jurisprudência avança com o entendimento de que a perda do tempo vital (que é um recurso produtivo limitado) pelo trabalhador, tanto quanto pelo consumidor, gera direito à indenização, visto que ao sofrer dano extrapatrimonial de natureza existencial, tal dano é indenizável in re ipsa[8].
Conforme nos aponta Marcos Dessaune[9], “a grande missão implícita de todo fornecedor, que é liberar os recursos produtivos do consumidor – fornecendo produtos e serviços de qualidade que devem a ele condições de empregar o seu tempo e as suas competências nas atividades de sua livre escolha e preferência -, está juridicamente fundada nos deveres jurídicos (do fornecedor) de qualidade-adequação, de qualidade-segurança, de informação, de boa-fé, de não empregar práticas abusivas no mercado, de indenidade, de responsabilidade civil” (217:245).
No que se aplica na relação trabalhista, podemos entender o “fornecedor” como ‘empregador’, que deve ter como missão implícita a liberação de recursos produtivos do trabalhador, ao fornecer no ambiente de trabalho produtos e serviços (ambiente salubre, equipamentos de proteção, intervalos, jornada de trabalho, programas de saúde do trabalhador, salário etc.) adequados e de qualidade, propiciando que o trabalhador empregue seu tempo e competências nas atividades para as quais foi contratado.
O empregador tem, assim, “o dever jurídico de qualidade-adequação” (definir tarefa adequada ao conhecimento e competência do empregado), “de qualidade-segurança” (p.e., determinar o uso de EPIs e treinamentos), de informação (deve informar os detalhes do cargo, da ética da empresa, do regulamento interno ou acordo coletivo aplicável), de boa-fé (não deve omitir informações e agir com intenção de prejudicar o trabalhador/reclamante), de não empregar práticas abusivas na relação trabalhista (como não pagar horas extras, adicionais de periculosidade, desvio de função, sonegação de direitos, retenção da CTPS etc.), de indenidade, de responsabilidade civil (se escusar em caso de acidente de trabalho ou morte).
A relação entre empregador e empregado, como comparado acima, se assemelha à relação entre fornecedor e consumidor, tanto pelo desequilíbrio financeiro-econômico, quanto pela capacidade técnica da parte mais forte, no caso a empresa, o que faz do empregado a parte hipossuficiente da relação laboral que, na maior parte das vezes, vê seus direitos trabalhistas desrespeitados.
A analogia encontrada é, portanto, consequência dessa semelhança de relação desproporcional comumente encontrada nas duas realidades, a consumerista e a trabalhista; afora a perda de tempo vital e existencial do consumidor/trabalhador na busca de seus direitos. Há um dano temporal configurado associado ao desvio produtivo, o que redunda em um “dano-evento”, um fenômeno socioeconômico, que deve ser indenizado por ser um dano extrapatrimonial de natureza existencial indenizável.
Segundo o autor da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, “o mau atendimento do fornecedor (…) é um ato antijurídico, uma vez que representa uma conduta que viola algum dever jurídico originário do fornecedor e o correspondente direito subjetivo do consumidor, tutelado pelo CDC.”
Assim, conforme a teoria consumerista aplicada analogicamente aos direitos trabalhistas, qualquer conduta antijurídica do empregador viola os direitos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho[10] que tutela o trabalhador. Pode-se exemplificar como violação recorrente a não anotação na carteira de trabalho no prazo previsto pelo artigo 29[11] da CLT.
Denota-se que a violação dos direitos trabalhistas pelo empregador propicia a aplicação por analogia dessa teoria consumerista no direito do trabalho, já que a Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor “consiste na indenização pela perda do tempo livre, diante de uma situação de mau atendimento, desviando-se o consumidor de suas competências com o objetivo de resolver problema criado pelo próprio fornecedor (DESSAUNE, 2017). Ou seja, o empregado perde seu tempo vital para buscar, por via administrativa ou judicial, a solução de um problema gerado pelo empregador, seja por omissão, má gestão ou até mesmo por desídia.
Além da ausência de anotação na CTPS há inúmeras situações em que é perfeitamente cabível a teoria do desvio produtivo na esfera trabalhista, tal qual o erro do empregador ao cadastrar o número do PIS do autor junto aos órgãos competentes que pode impossibilitar de o trabalhador sacar seu PIS e FGTS, pois é notório que por qualquer problema as instituições negam os benefícios, o que acaba causando transtornos e angústias em não conseguir receber o que lhe é de direito por erro de procedimento somado à inércia do empregador em tentar resolver.
Além dessa situação, entendemos que a aplicação da teoria do desvio produtivo pode servir como fundamento no pedido de indenização nas ações trabalhistas, quando o empregador deixar de fornecer ao INSS, Instituto Nacional do Seguro Social informações acerca do vínculo empregatício no CNIS (cadastro nacional de informações sociais) que pode acarretar em negativa de algum benefício previdenciário ou até mesmo da aposentadoria, pois tal situação frustra por completo a vida de um indivíduo.
Conforme situações narradas, o que se infere é que a teoria de Dessaune se adequa perfeitamente à seara trabalhista quando se comparam os desvios impostos ao trabalhador pelo empregador, ou seja, a violação de direitos trabalhistas básicos, como demora na anotação ou da baixa da CTPS no prazo legal; a falta de treinamento e de informação para exercício de função, a falta de equipamentos de proteção individual, o não pagamento de direitos trabalhistas incontestes (insalubridade, horas extras, férias ou de verbas resilitórias devidas em caso de demissão sem justa causa, o cumprimento de acordo coletivo etc.) e erro de procedimento que dificulte a percepção de qualquer benefício, seja ele previdenciário, FGTS ou seguro desemprego.
Assim, o momento em que o empregador se exime de solucionar o problema primitivo em prazo compatível com a real necessidade do trabalhador (momento consumativo do modus solvendi) é quando começa a se configurar o desvio produtivo do trabalhador, dando ensejo a duas alternativas de ações que são indesejadas: o próprio trabalhador assumir o prejuízo ou tentar ele mesmo solucionar a situação lesiva.
Muitas vezes, diante de violações trabalhistas que não deveriam existir ou ser corrigidas pelo trabalhador, o Judiciário tem que atuar para tutelar os bens jurídicos ofendidos.
A prestação de serviço ou entrega adequada de produto pelo fornecedor, analogicamente aplicadas, se assemelham às obrigações trabalhistas inerentes ao empregador que devem ser entregues ao trabalhador, tais como: pagamentos corretos de salário condizente à função exercida pelo trabalhador, equiparação salarial, horas extras, horas in itinere, jornada de trabalho, intervalos intrajornadas, férias, abonos, anotações em CTPS, recolhimento de PIS, emissão de guias, retenção de documentos etc.
As boas práticas trabalhistas devem ser implementadas para que o empregado não tenha que recorrer aos tribunais para ter seus direitos respeitados, visto que tais direitos são previstos e normatizados pela legislação trabalhista.
A essa situação recorrente, prejudicial ao trabalhador, os magistrados dos TRTs do país já estão aplicando, por analogia, a Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor.
5 – JULGADOS:
Conforme destaca o Portal ConJur[12], em matéria alusiva a essa inovação, o julgado pioneiro que aplica analogicamente a Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor na relação trabalhista, foi publicado pelo TRT-17 do Espírito Santo, no acórdão do Recurso Ordinário 0000210-16.2018.5.17.0101, em voto proferido pela Relatora, a desembargadora Daniele Corrêa Santa Catarina. Segundo ela, as relações de consumo e de trabalho são parecidas, especialmente por causa da hipossuficiência do consumidor e do trabalhador diante do fornecedor e do empregador, respectivamente.
Afirmou a desembargadora Daniele Corrêa Santa Catarina:
“Entendo plenamente cabível nessa especializada a referida teoria, impondo-se ao empregador que descumprir dever legal que lhe competia, levando o trabalhador ao desgaste de ajuizar uma ação para obter o bem da vida (incontroverso, diga-se de passagem, pois a baixa da CTPS é dever do empregador) ao pagamento de uma reparação por danos morais”.
Em nova decisão no mesmo tribunal, a turma recursal decidiu que
“O reconhecimento do vínculo e a correspondente anotação do contrato de trabalho na carteira profissional são obrigações que competem ao empregador. E a não observância dessas tarefas permite a presunção do dano moral causado ao trabalhador.”
Conforme a ementa do julgado[13] no Recurso Ordinário Trabalhista n. 0001757-05.2015.5.17.0002, é clara a violação de direitos básicos do trabalhador que ensejam a reparação exemplar, conforme se infere abaixo:
INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. AUSÊNCIA DE PAGAMENTO DE VERBAS SALARIAIS E RESCISÓRIAS NO PRAZO LEGAL. SÚMULAS 45 E 46 DO TRT DA 17ª REGIÃO. A conduta do empregador ao sonegar direitos básicos de grande repercussão na vida do empregado, como o pagamento das verbas salariais e rescisórias no prazo legal, é condição suficiente para provocar danos morais à dignidade, à honra, à imagem e ao bom nome da pessoa humana do cidadão trabalhador, que se vê, ipso facto, em posição de constrangimento em honrar as suas dívidas (e as dos seus dependentes) numa sociedade de consumo, sendo devida a indenização correspondente. Inteligência das Súmulas 45 e 46 do TRT da 17ª Região.
Segundo aponta a seguir o acórdão:
“Pode-se utilizar ao caso, por analogia, o entendimento que ora vem se tornando pacífico no âmbito do E. STJ no que tange às relações de consumo, que diz respeito à teoria do desvio produtivo.”
De forma inequívoca, a jurisprudência tem se assenhorado das similitudes da relação desigual entre trabalhador e empresa daquela do consumidor e fornecedor para aplicar a teoria do desvio produtivo, agora, do trabalhador.
6 – CONCLUSÃO:
O Trabalhador, muitas vezes prejudicado pela empresa que não cumpre a legislação trabalhista e viola seus direitos básicos, se socorre do Judiciário a fim de conseguir o respeito de seus direitos constitucionalmente previstos.
Muitas Empresas continuam agindo com desídia ao prorrogarem indefinidamente a solução dos desligamentos de empregados, postergando pagamentos de verbas rescisórias, não reconhecendo horas extraordinárias e deixando de cumprir as ações esperadas, como baixa na carteira, emissão de documento para dar entrada em seguro-desemprego ou para saque do FGTS.
A reforma trabalhista, que inseriu novos artigos e modernizou a CLT, instituindo novos mecanismos de defesa do trabalhador e se coadunando com o código de processo civil, é uma ferramenta que atende à evolução dos modelos de trabalho.
Porém, as empresas continuam a praticar atos que ferem os direitos de seus trabalhadores, principalmente no que tange ao tempo vital, em que poderiam estes estar trabalhando, estudando, restaurando as forças após um dia de intenso labor, e se tornando mais produtivos e motivados.
Portanto, para terem tais direitos reconhecidos e respeitados, esses trabalhadores precisam acorrer às Varas do Trabalho para solucionar demandas que jamais deveriam ter sido ajuizadas.
Para evitar que o trabalhador requeira a tutela de seus direitos, basta que as empresas priorizem as boas práticas e respeitem as leis vigentes.
Ganhariam, além de tempo, o respeito de toda a sociedade.
7 – BIBLIOGRAFIA:
BRASIL. Código de proteção e defesa do consumidor – Lei 8.078 de 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8078.htm. Acesso em 01 mar.2021
BRASIL. CLT – Decreto Lei nº 5.452 de 01 de maio de 1943, modificada pela Lei 13.467/2017.
BRASIL. Lei nº 13.874, de 2019
BRASIL. TRT-17. ACÓRDÃO TRT 17ª REGIÃO – 0001757-05.2015.5.17.0002 RO. Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/empresa-indenizar-mil-nao-assinar.pdf. Acesso em 01 mar.2021.
CONJUR. Teoria do desvio produtivo é um dos temas de série sobre 30 anos do STJ. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-dez-16/desvio-produtivo-temas-serie-30-anos-stj, 16/12/2018. Acesso em 01 mar.2021.
CONJUR. TRT-17 aplica teoria do desvio produtivo para condenar empresa. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jun-24/trt-17-aplica-teoria-desvio-produtivo-condenar-empresa#:~:text=Desenvolvida%20no%20Brasil%20pelo%20 advogado%20Marcos%20Dessaune%2C%20a%20teoria%20do,C%C3%B3digo%20de%20Defesa%20do%20Consumidor. Acesso em 01 mar.2021.
CONJUR. TJ-SP reconhece desvio produtivo do consumidor como dano autônomo. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jan-28/tj-sp-reconhece-desvio-produtivo-consumidor-dano-autonomo. Acesso em 17 fev.2021.
CONJUR. OAB-RJ pede que TJ crie súmula de desvio produtivo do consumidor. Publicado em 19/12/2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-dez-19/oab-rj-tj-crie-sumula-desvio-produtivo. Acesso em 01 mar.2021.
DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado e da vida alterada. 2ª edição revista e ampliada. Edição Especial do Autor. Vitória, ES, 2017.
MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno, Coord. DIÁLOGO DAS FONTES: novos estudos sobre coordenação e aplicação das normas no direito brasileiro. 1. ed. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.
MORAES, Carlos Alexandre. A Aplicação da Teoria do Diálogo das Fontes no Direito do Consumidor Brasileiro. GENJurídico, 2018. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2018/05/23/a-aplicacao-da-teoria-do-dialogo-das-fontes-no-direito-do-consumidor-brasileiro/#_ftn45. Acesso em 01 mar.2021.
RAÓ, Vicente. O Direito e a vida dos direitos. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013
[1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-dez-16/desvio-produtivo-temas-serie-30-anos-stj, 16/12/2018. Acesso em 01 mar.2021.
[2] OAB-RJ pede que TJ crie súmula de desvio produtivo do consumidor. Publicado em 19/12/2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-dez-19/oab-rj-tj-crie-sumula-desvio-produtivo. Acesso em 01 mar.2021.
[3] Aquele que independe da comprovação do grande abalo psicológico sofrido pela vítima.
[4] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jan-28/tj-sp-reconhece-desvio-produtivo-consumidor-dano-autonomo. Acesso em 17 fev.2021.
[5] MORAES, Carlos Alexandre. A Aplicação da Teoria do Diálogo das Fontes no Direito do Consumidor Brasileiro. GENJurídico, 2018. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2018/05 /23/a-aplicacao-da-teoria-do-dialogo-das-fontes-no-direito-do-consumidor-brasileiro/#_ftn45. Acesso em 01 mar.2021.
[6] In: DIÁLOGO DAS FONTES: novos estudos sobre coordenação e aplicação das normas no direito brasileiro. MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno, Coordenação. 1. ed. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 255-256.
[7] Bem é aquilo que tem valor jurídico, é o objeto de direitos sobre o qual o titular exerce os poderes que a ordem jurídica lhe concede (In: RAÓ, Vicente. O Direito e a vida dos direitos. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 757)
[8] Dano in re ipsa é aquele que independe da comprovação do grande abalo psicológico sofrido pela vítima.
[9] DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado e da vida alterada. 2ª edição revista e ampliada. Edição Especial do Autor. Vitória, ES, 2017.
[10] CLT – Decreto Lei nº 5.452 de 01 de maio de 1943, alterada pela Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017.
[11] CLT, Art. 29. O empregador terá o prazo de 5 (cinco) dias úteis para anotar na CTPS, em relação aos trabalhadores que admitir, a data de admissão, a remuneração e as condições especiais, se houver, facultada a adoção de sistema manual, mecânico ou eletrônico, conforme instruções a serem expedidas pelo Ministério da Economia. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)
[12] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jun-24/trt-17-aplica-teoria-desvio-produtivo-condenar-empresa#:~:text=Desenvolvida%20no%20Brasil%20pelo%20advogado%20Marcos %20Dessaune%2C%20a%20teoria%20do,C%C3%B3digo%20de%20Defesa%20do%20Consumidor. Acesso em 01 mar.2021.
[13] ACÓRDÃO TRT 17ª REGIÃO – 0001757-05.2015.5.17.0002 RO. Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/empresa-indenizar-mil-nao-assinar.pdf. Acesso em 01 mar.2021.
Por Heloisa Barbosa Brum e Fernanda Prado dos Santos;
Heloisa Barbosa Brum, Advogada graduada pela Faculdade Nacional de Direito – UFRJ. Pós-graduanda em Processo Civil na Universidade Cândido Mendes – RJ, Advogada Voluntária na 02DRDH RJ – DPU RJ, Membra da Comissão Nacional de Estudos em Direitos Sociais, Diversidade e Inclusão da ABA, Mentorada no Projeto ADVOGA da OAB/RJ.
Fernanda Prado dos Santos, Advogada graduada pela Universidade Candido Mendes, Pós-graduada em Direito e processo do trabalho pela IBMEC/RJ, sócia, fundadora do escritório Fernanda Prado Sociedade Individual de Advocacia. Mentora de advogados na OAB/RJ, membra da comissão de apoio a advocacia empreendedora na OAB/RJ e presidente da Comissão Nacional de Estudos em Direitos Sociais, Diversidade e Inclusão da ABA.