Resumo: O presente artigo visa refletir sobre a complexa tarefa de garantir a efetividade do comando constitucional de acesso universal à saúde diante da escassez de recursos, notadamente sobre os dilemas bioéticos envolvidos, em especial quando um dos bens em ponderação é o direito à vida.
Palavras-chave: bioética; direito à saúde; direito à vida; princípios.
De acordo com a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 196, a saúde é direito de todos e dever do Estado, que deve ser assegurado mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Como Constituição cidadã, promulgada no período de redemocratização do país, o texto-base constitucional garante os direitos e os deveres dos entes políticos, assim como de todos os cidadãos.
Nesse cenário, o acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde, especialmente em tempos de avançada evolução tecnológica da Medicina, revela-se desafio de grande relevância pública.
Desta forma, a saúde é:
“um dos direitos mais essenciais ao ser humano, resultado de uma longa evolução e de árduas conquistas no decorrer da história. As dificuldades em sua implementação, entretanto, sejam de cunho fático, como a escassez material; sejam de natureza ideológica, como a resistência à exigibilidade do direito social à saúde; sejam, ainda, de caráter político, como a má elaboração/gestão de recursos disponíveis, ameaçam tornar essa conquista, muitas vezes, um “direito de papel”, acentuando a disparidade entre o discurso jurídico-constitucional de proteção à saúde e a realidade de carências.” (VILLAS-BÔAS, 2014)
Na atualidade, notadamente em tempos pandêmicos, ainda há uma maior sobrecarga do sistema de saúde brasileiro, revelando-se um desafio de superação, nunca antes visto, a equânime alocação dos escassos recursos públicos financeiros e, também, humanos.
É nesse sentido que a Bioética marca sua importante trajetória na saúde pública.
Essa reflexão permeia diversos aspectos, desde questões éticas do próprio profissional de saúde e seu código deontológico até a evolução tecnológica, com um incremento substancial dos custos dela decorrentes.
A equação é de difícil solução. Por um lado, a universalidade de acesso à saúde prevista no texto constitucional aliada ao direito fundamental à vida digna e a evolução biotecnológica, que eleva custos e as expectativas sociais quanto à prestação de atendimentos médicos; de outro, a escassez de recursos que são absolutamente finitos.
Médicos prescritores de tratamentos, gestores públicos e operadores de direito, que se utilizam da judicialização como meio de garantir direitos, assim como toda a população, são, hoje, obrigados a refletir sobre a gravidade da temática e, diariamente, precisam fazer escolhas difíceis em prol de interesses individuais, sem se afastar da necessária visão utilitarista, que busca a maximização de bem-estar à coletividade.
Há, portanto, uma enorme e crescente disparidade entre as inúmeras possibilidades tecnológicas e o bem-estar real, especialmente porque não se torna possível atingir a todos indistintamente, face à limitação dos recursos.
Em todos os códigos de ética dos profissionais da saúde há previsão de compromissos do oferecimento do melhor tratamento ao paciente como forma de garantir o direito fundamental à vida com qualidade, assim como existe também a autonomia médica, em suas escolhas em favor da cura, do tratamento, da diminuição da dor dos seres humanos a seus cuidados.
Neste sentido, o Código de Ética Médica de 2010 (Resolução n.º 1.937, do Conselho Federal de Medicina) dispõe, dentre os seus princípios fundamentais:
I – A medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza.
II – O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício do qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.
V – Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente.
VI – O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício, mesmo depois da morte (…)
XIV – O médico empenhar-se-á em melhorar os padrões dos serviços médicos e em assumir sua responsabilidade em relação à saúde pública, à educação sanitária e à legislação referente à saúde.
XVI – Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou instituição, pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos meios cientificamente reconhecidos a serem praticados para o estabelecimento do diagnóstico e da execução do tratamento, salvo quando em benefício do paciente.
Verifica-se a plena sintonia dos supracitados dispositivos com o que preconiza o inciso XIII, do artigo 5º, da Constituição Federal que diz que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer.”.
Toda ação médica deve, portanto, pressupor o reconhecimento de valores implícitos, do próprio profissional e do paciente, que são seres humanos, no conjunto de atributos morais, materiais e físicos, para que não haja a coisificação das pessoas, com o descaso à personalidade e à individualidade.
Assim, cabe a reflexão:
“todos são unânimes em acatar o princípio da liberdade relativa, pois a profissão médica, entre outras, traz em si elevados interesses ligados à pessoa humana. Desse modo, nem sempre é absolutamente livre o exercício da profissão médica, pois além de ela ser do interesse público, em face de existir em si o bem-estar de todos e de cada um, ainda é do próprio interesse coletivo que se possa, em certas ocasiões, impor alguma resistência a uma liberdade que se contrapõe à ordem pública e à paz social.” (FRANÇA, 2019)
De acordo ainda com o Código de Ética Médica, não podem ser impostas restrições a atos médicos, nos seus meios de tratamento ou de diagnósticos escolhidos, simplesmente porque o administrador do estabelecimento de saúde decidiu simplificar ou diminuir custos, podendo, apenas, em algumas situações, estipular escolhas dentre às alternativas possíveis, sem que isso cause prejuízos ao paciente.
Não se pode olvidar que há situações de mão única, sem possibilidade de escolha para garantir o bem maior, que é a vida. Todavia, no mais das vezes, existem alternativas e, assim, cabe aos profissionais da saúde deliberar eticamente, reconhecendo e diferenciando o meramente conveniente e o absolutamente necessário.
Disso depende a sustentabilidade do sistema de saúde brasileiro.
As decisões de alocação de parâmetros que garantam a dignidade da pessoa humana, apenas em favorecimento apenas daqueles que têm mais acesso às informações e à tecnologia de ponta, em detrimento daqueles a quem falta o mínimo existencial, precisam ser sopesadas e avaliadas com critérios bioéticos. Outrossim:
“diante de um caso concreto, como saber, então, se determinado tratamento deve ou não ser custeado com recursos públicos ou a que paciente deve ser destinado um recurso não financeiro escasso, como um órgão para transplante ou uma vaga de UTI? Quais os critérios aplicáveis? É a visão utilitária que deve prevalecer? É a ideia de que a vida justifica quaisquer gastos e providências? E o que dizer das inúmeras vidas que não estão no processo e que também dependem do dinheiro público ou dos recursos não financeiros em falta? Como encontrar um meio-termo entre esses dois extremos? Existe resposta para as chamadas “decisões trágicas em saúde”?”. (VILLAS-BÔAS, 2014)
Observa-se, na sequência, que o artigo 6º da Lei Orgânica da Saúde (Lei n.º 8.080/90), que direciona a atuação do Sistema Único de Saúde – SUS, preconiza que a assistência terapêutica integral, inclusive a farmacêutica, deve ser assegurada a todos, indistintamente, dispositivo que fundamenta o crescente aumento da judicialização da saúde.
É certo, entretanto, que há de se discutir o quão ampla é a autonomia médica na terapêutica prescrita por médicos diante das alternativas hoje existentes.
Perspectivas como essas aumentam ainda mais a importância da Bioética, especialmente nas escolhas dos gestores, que detêm a responsabilidade de gerir a máquina pública em plena escassez de recursos.
Por certo, não há solução definitiva. Existem casos concretos, autonomia médica e dos pacientes, níveis de consciência individual e coletivo, estatísticas, princípios, valores, políticas, gestão de recursos, leis orçamentárias e organizacionais que devem convergir num só objetivo: o direito à vida digna e à saúde.
Referências:
França, Genival Veloso. Comentários ao código de ética médica. 7ª edição. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2019.
Silva, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 42ª edição. São Paulo: Malheiros, 2019.
Villas-Bôas, Maria Elisa. O direito à saúde no Brasil: reflexões bioéticas à luz do princípio da justiça. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
Por Fernanda Borges Keid, advogada inscrita na OAB/SP n.º 362.513, especialista em Direito Médico e da Saúde pelo Programa de Formação em Direito Médico – IPDMS – Instituto Paulista de Direito Médico e da Saúde; pós-graduanda em Direito Médico e Hospitalar pelo Centro Preparatório Jurídico – CPJUR, pesquisadora em Bioética Clínica, membro integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Bioética e Biodireito da USP.