Artigo por Dra. Francieli Menezes Briese e Dra. Myllena Gonçalves Duarte
Ao longo da história, a preocupação com a segurança e o bem-estar do paciente ganhou força na sociedade, principalmente após a Revolução Francesa e Industrial. Com o avanço tecnológico, os profissionais da saúde perderam o caráter divino e assumiram uma forma mais comum, sujeito a falhas e questionamentos. Nesta circunstância, direitos como o consentimento e o dever informacional passaram a ser considerados indispensáveis nas relações com profissionais da saúde.
Em 1979 a Comissão Nacional Americana para a Proteção de Sujeitos Humanos nas Pesquisas Biomédicas e Comportamentais criou princípios éticos básicos norteadores da experimentação com seres humanos nas ciências que envolviam comportamento e biomedicina. Após diversos estudos a Comissão concluiu pela implementação de quatro princípios básicos para a orientação de condutas aceitáveis em pesquisas médicas, e que hoje são utilizadas em todas as áreas da saúde, são eles: autonomia, beneficência, não maleficência e justiça.
O primeiro desses princípios, da autonomia e vontade do paciente, que vai atender aos interesses do presente texto, é responsável por direcionar o profissional da saúde a agir de modo compatível com os interesses do paciente. Este princípio é a capacidade que o paciente tem de expressar livremente sua vontade, sua opinião e assim receber do profissional de saúde respeito e compreensão quanto a suas crenças e valores. Através dele é assegurado ao paciente o direito de que sua vontade prevaleça sobre a opção de tratamento escolhida pelo médico, desde que de forma consciente.
O princípio da autonomia se concretiza e é exercido por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, ou seja, para exercer de fato seu direito de expressar livremente sua vontade é preciso que seu consentimento sobre determinado tratamento, seja totalmente consciente e livre de qualquer influência ou indução e sempre precedido de todas as informações necessárias, essenciais e acessíveis para decidir livremente sobre sua condição.
A ausência desse dever informacional por parte do profissional da saúde pode constituir infração ética.
Isto posto, o consentimento informado não é apenas a transmissão de informações ao paciente, é necessário e imprescindível que o profissional detalhe e explique a amplitude do procedimento ou tratamento ao qual será submetido, informando-o dos benefícios, das complicações, dos riscos, bem como das alternativas de tratamento. Essas informações além de repassadas devem ser compreendidas pelo paciente, visto que, além da capacidade civil do sujeito, se exige também a capacidade específica para consentir.
Caso o paciente não possa fazê-lo, devido a sua incapacidade civil, o consentimento pode ser dado por responsável legal, mas neste caso, devem ser repassadas ao responsável todas as informações e detalhadas da mesma forma, esta situação é conhecida como consentimento substituto.
Todavia, existem casos em que o paciente em determinada situação de vulnerabilidade social, apesar de plenamente capaz para os atos da vida civil, por razões socioeconômicas e culturais não consegue exercer de forma plena seu direito de autonomia, ante a dificuldade de ler, interpretar e compreender o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Segundo a United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation (UNESCO), cerca de 14% da população mundial, com mais de 15 anos não conseguem ler textos simples. No Brasil atualmente existem cerca de 11,3 milhões de pessoas analfabetas, sendo que 8% são analfabetos absolutos, não conseguem ler nem ao menos palavras e frases simples e 29% da população adulta, são consideradas analfabetas funcionais, ou seja, apesar de conseguirem identificar letras e números, possuem grande dificuldade de leitura, compreensão e interpretação, sendo incapaz utilizar a leitura e a escrita em suas atividades cotidianas.
Uma pesquisa realizada pelo InCor-Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, demonstrou que 50% dos pacientes que leem o TCLE não compreendem o seu conteúdo ou as informações explicadas pelos profissionais e mesmo sem compreender o conteúdo da informação contida no TCLE, 97,5% das pessoas assinam o documento.
Desta forma, podemos concluir que apesar de existirem fundamentos, princípios e normas que obrigam o profissional a cumprir o dever de informação e esclarecimento, observa-se que na prática esse direito de autonomia do paciente não está sendo efetivado.
Isso porque, o TCLE vem sendo utilizado apenas como uma ferramenta legal e defensiva e não como facilitador para a concretização da autonomia do paciente. Assim, a complexidade das informações, bem como os termos técnicos e o excesso de páginas contribuem para dificultar seu entendimento exigindo do paciente um nível pleno de alfabetização, o que não é a realidade de uma grande parte da população, sobretudo aquelas afetadas pelas adversidades socioeconômicas e culturais.
Portanto, deve-se considerar a vulnerabilidade individual ou pessoal de cada paciente no processo de consentimento, e assim, fornecer em quantidade e qualidade suficientes para que se tornem razoavelmente capazes de tomar decisões informadas sobre a sua vida e saúde. A linguagem deve ser adequada de acordo com a idade, nível cognitivo, psicológico, cultural e de compreensão dos pacientes.
Sugerimos como parte dessa estratégia para diminuição dos efeitos da vulnerabilidade do paciente analfabeto e mínima garantia do cumprimento do dever de informação e direito de autonomia, a transmissão de todas as informações pertinentes de forma oral e a leitura do termo de consentimento na presença de testemunha, escolhida pelo paciente, que tenha nível de alfabetização plena, se o paciente for analfabeto absoluto e, para os casos de analfabetismo funcional, sugere-se a adequação do documento informativo, de modo a simplificar as informações através da utilização de palavras e termos que sejam familiares a esses pacientes, da utilização de perguntas como subtítulos e também na elaboração de textos curtos no qual o sujeito possa localizar, de maneira direta e clara, as informações que precisa para decidir.
Em linhas gerais, é possível concluir que o consentimento esclarecido não está restrito a anuência do paciente em se submeter a determinada terapêutica médica com a assinatura de um documento, mas, acima de tudo, envolve respeito, diálogo, paciência, empatia, segurança e acolhimento na relação médico-paciente.