O objetivo dessa dissertação crítica é, através de uma epistemologia marxista, analisar a nova realidade das relações de trabalho advindas com a tecnologia de aproximação, vulgarmente conhecida como Uberização, a partir do referencial teórico “O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital” de Ricardo Antunes.
A sociedade capitalista sustenta-se na eterna produção do valor objetivando o lucro de suas operações automáticas intermediada pela mercadoria. Este sistema se constitui sobre o eterno conflito de duas classes, a trabalhadora e a capitalista, as quais interagem e divergem entre si na dinâmica de produção de mercadorias, bem como na produção das diversas intercessões que emergem desse processo constitutivo de sociabilidade.
Cumpre destacar que este modelo de acumulação desenfreado, apesar das falsas sensações de estabilidade, empregos dignificando os homens, legitimação de direitos sociais, expansão das iniciativas públicas e investimentos estatais, por conta da ganância sem limite das classes elitistas, a história demonstra que em ciclos médios entre 40 e 50 anos, seu próprio modelo sucumbe nas crises econômicas, taxas de desemprego, informalidade de trabalho, estagnação produtiva pois a sociedade não consegue consumir o que produz, políticas de austeridade, extinção de direitos e flexibilização das normas trabalhistas. “A degradação típica do taylorismo e do fordismo […], teve (e ainda tem) um desenho mais acentuadamente despótico, embora mais regulamentado e contratualista”. (ANTUNES, 2018, p. 88).
Nessa perspectiva, destaca-se o colapso financeiro oriundo da especulação imobiliária americana que atingiu o império capitalista central em 2008, gerando uma crise mundial com profundo desemprego e desmesurada descentralização produtiva, demonstrando que o modelo de acumulação capitalista pós fordistas não mais se sustentaria.
Com este cenário de crise e evidente necessidade de readaptação do capitalismo, a revolução industrial restou ultrapassada frente a gigantesca inovação tecnológica, usualmente chamada de Revolução 4.0.
Antunes com seu peculiar brilhantismo externa com propriedade a passagem da revolução industrial para tecnológica (2018, p. 43):
Sua denominação, indústria 4.0, estampa, segundo seus formuladores, uma nova fase da automação industrial, que se diferencia da Revolução Industrial do século XVIII, do salto dado pela indústria automotiva do século XX e também da reestruturação produtiva que se desenvolveu a partir da década de 1970. A essas três fases anteriores sucederá uma nova, que consolidará, sempre segundo a propositura empresarial, a hegemonia informacional-digital no mundo produtivo, com os celulares, tablets, smartphones e assemelhados controlando, supervisionando e comandando essa nova etapa da ciberindústria do século XXI.
Com a chegada da era digital, as novas modalidades de contratação por aplicativos de smartphones alteram veemente as relações entre capital e força de trabalho que passam a ocorrer de forma automatizada por algoritmos que gerenciam incalculáveis volumes de dados programando diretrizes, metas, comportamentos e resultados.
Nessa perspectiva, as formas de prestação de serviço sofreram profundas alterações em seus padrões habituais de negócio. Isso porque, os serviços por demanda oferecidos via aplicativo não dependem do comparecimento do trabalhador em uma sede para cumprimento de uma jornada de trabalho pré- estabelecida, muito menos de uma estrutura produtiva condicionada a estoques.
O atual modelo de acumulação capitalista ainda não tem nomenclatura definida e muito por isso vem sendo chamada de pós pós fordismo, cujo novo estágio da exploração do trabalho é proclamado como Uberização. Uma referência direta a empresa UBER que é principal plataforma digital voltada para o serviço de transporte a nível mundial, e a pioneira na implementação deste modelo de negócio.
A empresa Uber em seu portal online assim se qualifica: “Quando as pessoas têm mobilidade, tudo é possível. As oportunidades surgem, as portas se abrem e os
sonhos se tornam realidade. Nossa tecnologia, que começou como uma simples forma de pedir viagens ao toque de um botão, já possibilitou bilhões de conexões entre pessoas no mundo todo.”1
Em síntese, sua proposta é oferecer transporte personalizado e principalmente acessível, de forma que supere a concorrência às modalidades convencionais de mobilidade urbana. Neste cenário, a empresa interliga pessoas comuns que, diante da crise com um cenário de crescente desemprego, almejam por oportunidade de obter uma fonte de renda, do outro lado, por óbvio, uma demanda crescente e diversificada de usuários interessada no baixo custo das viagens.
Todavia, importante enfatizar que apesar da semelhança entre o nome da empresa Uber e novo modelo capitalista, Uberização não é um modelo de negócio exclusivo desta empresa. Há uma gama significativa de empresas tais como: Cabify, Glovo, Ifood, Rappi, dentre muitas outras, lançando aplicativos com objetivo de obter lucro através deste modelo de aproximação intermediado por um algoritmo conectando pessoas com interesses em comum.
A título de impressão, cabe aqui mencionar trecho do artigo de Alexandre Putti no site da Carta capital:
[…] apps como Uber, iFood e Rappi seriam os maiores “empregadores” brasileiros caso se unissem em uma única companhia. Nos últimos anos, diante do aprofundamento da crise econômica e da destruição das vagas formais, esse grupo de empresas virtuais, em geral sediadas no exterior, passou a intermediar a oferta de trabalho intermitente e mal remunerado para 4 milhões de entregadores e motoristas. (PUTTI, 2019).
No Brasil, haja vista o elevado desemprego gerado pela profunda crise econômica e política, essas empresas-plataformas se tornaram sinônimo de precarização de trabalho. Os vinculados a essas plataformas aceitam condições degradantes de trabalho para garantia de sobrevivência com baixa remuneração,
1 UBER. Quem somos 2020. Disponível em: https://www.uber.com/br/pt-br/about/. Acesso em: 25 Out.2020.
baixas condições de trabalho e frágeis vínculos trabalhistas. “A instabilidade e a insegurança são traços constitutivos dessas novas modalidades de trabalho. […] Trata-se de uma espécie de trabalho sem contrato, no qual não há previsibilidade de horas a cumprir nem direitos assegurados.” (ANTUNES, 2018, p. 29-30)
Essa nova relação ocorre através da subordinação ao algoritmo imputada pelas empresas-aplicativos que, com o objetivo de auferir o máximo do lucro possível, controlam os valores das tarifas das viagens sem margem para negociação com os seus tidos colaboradores, controlam a qualidade do serviço prestado por seus coparticipantes através de avaliação pelos usuários podendo desliga-los em caso de notas negativas, bem como controlam o quantitativo da mão de obra disponível vez que premiam os cooperadores ativos em momentos de pouca demanda. Conforme muito bem externado por Porto (2017, v. 3, n. 1, p. 138):
Em razão dessa aparente autonomia, tais trabalhadores não se enquadram na noção tradicional de subordinação, sendo qualificados como autônomos. O resultado é que eles continuam sem liberdade real, como no passado, mas passam a ter que suportar todos os riscos advindos da sua exclusão das tutelas trabalhistas. Percebe-se, assim, que a manutenção do conceito tradicional de subordinação leva a grandes distorções, comprometendo a própria razão de ser e missão do Direito do Trabalho. Por isso a ampliação desse conceito é uma necessidade premente e inadiável.
Deste modo, verifica-se, que em verdade, não há uma colaboração e sim uma hiante subordinação na qual os colaboradores são compelidos a seguir todas as diretrizes que a plataforma lhes impõe sem qualquer critério de autonomia, em virtude da extrema necessidade de manutenção da continuidade da atividade laboral dos ali inseridos.
Mas não é só, outra peculiaridade deste novo modelo de acumulação capitalista que contribui para precarização destas relações, decorre da transferência dos riscos de empreendimentos dos titulares desse modelo capitalista de negócio para seus “colaboradores”, esquivando-se das responsabilidades legais que seriam inerentes às relações empregatícias subordinadas.
Essa transferência de risco fica evidenciada quando a empresa de aplicativo repassa a obrigação ao colaborador de possuir o equipamento necessário para execução do serviço, seja um carro, moto ou uma bicicleta, bem como, os custos desse instrumento de trabalho que para conservação da atividade necessita de manutenções periódicas ou acidentárias, combustível, seguro, multas de transito e até mesmo os impostos.
Assim, temos que a subordinação ao algoritmo e a transferência do risco são dois balizadores da precariedade desta relação, na qual os trabalhadores que não se sujeitam ao ritmo deste novo processo produtivo do capitalismo, sem a menor garantia de estabilidade ou indenização, se tornam descartáveis. “Transformam-se os homens que trabalham em obsoletos e descartáveis que devem ser ‘superados’ e substituídos por outros novos e modernos, isto é, flexíveis” (Druck, 2011, p. 43).
Portanto, após análise da nova modalidade de acumulação capitalista instrumentalizada na Uberização, advinda da ruptura com o modelo pós fordista de produção a partir da crise de 2008, resta evidenciada a nova forma de submissão do trabalhador que, através da transferência do risco, a força de trabalho produtiva é obrigada a assumir a responsabilidade pela obtenção dos equipamentos necessários para execução do labor. Ainda neste novo modelo, empresas camufladas no argumento de serem plataformas de intermediação, evidentemente impõem aos seus colaboradores uma subordinação algorítmica através de metas e diretrizes não negociáveis, ao modo que os cooperadores submissos a esta imposição algorítmica, aceitam essa condições totalmente precarizadas como fonte de renda para sobrevivência no momento de crise.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018
DRUCK, Graça. Trabalho, precarização e resistências: novos e velhos desafios? Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103497920 11000400004&lng=en&nrm=iso>. Acessado em: 24 out. 2020.
PORTO, Lorena Vasconcelos. A parassubordinação como forma de discriminação.
Revista Direito das Relações Sociais e Trabalhistas, Brasília, v.3, n.1, 2017.
PUTTI, Alexandre. Apps são os maiores empregadores, mas precarização dá o tom nos trabalhos. Carta Capital, São Paulo: 2019. Disponível em:
<https://www.cartacapital.com.br/economia/proletariado-digital-apps-promovem- trabalhos-precarios-a-brasileiros> Acessado em: 17 out. 2020.
Por Fabriccio Mattos do Nascimento, Advogado Trabalhista pelo Escritório Gameleira Pelagio Fabião e Bassani | Membro Integrante da Comissão de Direito Trabalhista da Associação Brasileira de Advogados (ABA) | Pós-graduando em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).