Por Igor Raatz*
Uma das grandes contribuições da Crítica Hermenêutica do Direito (CHD) é a defesa da autonomia do Direito, o que depende de uma postura conservadora no sentido de não se admitir, salvo em situações específicas, o afastamento da lei.
Trata-se de questão crucial para uma democracia, na medida em que o respeito à legislação, fruto legislativa da função de jurislação, que cabe ao Poder Legislativo, e não ao Poder Judiciário[1], não deixa de ser uma defesa da Constituição. Dito de outro modo, a defesa da autonomia do direito é também defesa da garantia fundamental da legalidade.
Desse modo, sob a ótica da CHD é possível encontrar critérios para que o juiz possa, eventualmente, deixar de aplicar a lei. Tem-se, portanto, uma teoria prescritiva acerca do excepcional, ou seja, do afastamento da lei, que, no entanto, tornou-se o usual no Direito brasileiro. Na verdade, a confusão entre o espaço jurisdicional e legislativo vem permitindo que o primeiro absorva o segundo.
Do mesmo modo, a confusão conceitual entre a jurisdição e o processo, redundou, para boa parte dos setores doutrinários brasileiros, em fenômeno semelhante: nada escapa ao poder jurisdicional, que, nesse caminho, vai suplantando a legalidade e o processo, os quais, longe de serem concebidos como garantias, passam a ser encarados como instrumentos a serviço da jurisdição.
A teoria da decisão proposta pela Crítica Hermenêutica do Direito contempla uma série de critérios e perguntas que devem ser feitas antes da tomada de uma decisão judicial. Todos esses critérios são expostos nas diversas obras do professor Lenio Streck. Destaca-se, entre todos, o texto denominado de “resposta adequada à Constituição” do Dicionário de Hermenêutica que traz esse elenco de critérios de forma bem sistematizada:
“Assim, um juiz somente pode deixar de aplicar uma lei em seis hipóteses: (i) quando a lei for inconstitucional, ocasião em que deve ser aplicada a jurisdição constitucional difusa ou concentrada; (ii) quando estiver em face do critérios de antinomias; (iii) quando estiver em face de uma interpretação conforme a Constituição; (iv) quando estiver em face de uma nulidade parcial com redução de texto; (v) quando estiver em face da inconstitucionalidade com redução de texto; (vi) quando estiver em face de uma regra que se confronte com um princípio, ocasião em que a regra perde sua normatividade em face de um princípio constitucional, entendido este como um padrão, do modo como explicitado em Verdade e Consenso. Fora dessas hipóteses, o juiz tem a obrigação de aplicar, passando a ser um dever fundamental”[2].
No âmbito do direito processual, saltam aos olhos diversas situações em que a legislação é simplesmente ignorada por juízes e tribunais. Um bom exemplo disso, é o artigo 300, §3.º, do Código de Processo Civil, o qual estabelece que “a tutela de urgência de natureza antecipada não será concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão”.
Na prática judiciária brasileira, referido dispositivo legal costuma ser utilizado como um álibi, como uma espécie de reforço argumentativo, normalmente para encerrar a fundamentação de decisões em que indeferida a tutela antecipada. Normalmente, utiliza-se algum jargão de estilo como “e ainda que se considerasse a presença dos requisitos para a concessão da tutela antecipada, esbarraria o pedido na vedação contida no art. 300, §3.º, do CPC…”.
Ao mesmo tempo, porém, verificamos uma série de casos em que a tutela antecipada é concedida ainda que irreversíveis os seus efeitos. Trata-se de um fenômeno cuja possiblidade é reconhecida pelo próprio legislador ao estabelecer a proibição prevista no art. 300, §3.º, do CPC, e que deixa claro que a expressão “tutela provisória”, utilizada pelo Código de Processo Civil brasileiro, além de não ser imune à crítica, resume-se à estabilidade do provimento jurisdicional.
É necessário, pois, reconhecer a ambiguidade essencial do conceito de provisoriedade, da qual falava Ovídio A. Baptista da Silva, o qual, partindo do pressuposto de que nem tudo que é provisório no plano normativo será provisório no plano fático, distinguia a tutela de urgência satisfativa provisional (interinal) da tutela de urgência satisfativa autônoma, reconhecendo que a tutela de cognição sumária é capaz de conferir uma tutela satisfativa ao direito material que, no plano fático, possa ser definitiva ou provisória[3].
Um bom exemplo disso é o das ações em que se postula a concessão de um determinado medicamento ou, até mesmo, a realização de um procedimento cirúrgico. Nesses casos, embora a tutela seja provisória no plano normativo, será definitiva no plano prático, como buscamos explicitar, de modo mais aprofundado, no livro Tutelas Provisórias no Processo Civil brasileiro[4].
Então, a pergunta que fica é a seguinte: como pode o juiz conceder a tutela antecipada, quando seus efeitos forem definitivos, sem, contudo, violar a garantia da legalidade? Seguindo as premissas anteriormente expostas, devemos considerar essa possibilidade como sendo a exceção, e não a regra. Para fugir da regra, portanto, deverá o juiz utilizar-se de uma das seis hipóteses de que fala Lenio Streck em sua teoria da decisão.
Trata-se de um empreendimento que revela, de forma muito clara, o necessário intercâmbio entre a dogmática do direito processual e a teoria do direito. Mais do que nunca, é necessário reconhecer que a dogmática processual não pode simplesmente ignorar a teoria do direito.
Com efeito, a dogmática processual vem, há muito, assentando que a irreversibilidade fática pode ser recíproca, vale dizer, que o indeferimento da tutela antecipada também poderá gerar uma situação irreversível em prejuízo do autor, do mesmo modo como o seu deferimento é capaz de estabelecer uma situação irreversível em face do réu. Nesses casos, não seria crível que, diante da “irreversibilidade recíproca”, o autor tenha que sair sempre prejudicado, mesmo quando o seu direito seja provável.
A situação, no mínimo, redundaria em manifesto tratamento desigual sem que, para tanto, existisse critério justificável. Nesse sentido, leciona Eduardo José da Fonseca Costa que, “se, no mesmo caso, o indeferimento da tutela gerar risco de dano irreversível ao direito do autor e o seu deferimento gerar perigo de irreversibilidade a uma reposição in natura da situação fática anterior, deverá o juiz sacrificar o direito improvável”[5].
No âmbito jurisdicional, no entanto, duas são as soluções mais comuns diante da dupla irreversibilidade: (i) ou o juiz simplesmente ignora a lei e concede a tutela antecipada ou (ii) utiliza-se da “ponderação” (à brasileira), subterfúgio vocacionado a uma espécie de substituição do Estado de Direito pelo “Estado da ponderação”, com o qual a legalidade cede espaço à liberdade jurisdicional[6]. Para não nos alongarmos no tema específico da crítica à ponderação no Direito brasileiro, sugerimos a leitura da excelente obra do professor Rafael Dalla Barba[7].
As duas soluções apontadas não parecem dar, suficientemente, cabo ao problema do afastamento da regra do art. 300, §3º, do CPC, o qual impõe, ao órgão julgador, um pesado ônus argumentativo. Com efeito, e à medida que em toda decisão judicial há exercício de jurisdição constitucional, é possível, diante da já referida “dupla reversibilidade”, trilhar o seguinte caminho: o art. 300, §3º, CPC, em casos em que há dupla irreversibilidade, viola o direito fundamental à igualdade, na medida em que trata de modo diferente o autor cujo direito é provável, conferindo ao réu, cujo direito é improvável, uma manifesta situação de vantagem.
Sob essa perspectiva, o art. 300, §3º, CPC, confere proteção somente ao réu, ainda que seu direito seja improvável e que o autor também esteja diante do risco irreversibilidade. Afora a manifesta desigualdade processual criada pelo referido dispositivo legal diante de tais circunstâncias, não há dúvida de que a aplicação tabula rasa do art. 300, §3º, também tende a gerar situação em que há uma violação ao dever de proteção suficiente às posições jurídicas fundamentais das partes, o que também conduziria à violação do direito fundamental à tutela jurisdicional adequada e efetiva (art. 5º., XXXV, CF).
Isso tudo, obviamente, não impõe a decretação da inconstitucionalidade do art. 300, §3º., CPC, para todos os casos futuros; até porque, salvo situações em que há dupla irreversibilidade aliada à probabilidade do direito do autor, ele se presta a conferir uma proteção legítima à esfera jurídica do réu.
Porém, sua incidência deve ser afastada quando há dupla irreversibilidade e o direito do autor é provável, tendo em vista os direitos fundamentais à igualdade e à tutela jurisdicional adequada e efetiva valendo-se o órgão julgador, de um das seis hipóteses previstas na teoria da decisão de Lenio Streck, qual seja, a declaração parcial de nulidade sem redução de texto[8] – hipótese na qual a norma do art. 300, §3º., do CPC será inconstitucional somente diante de certa hipótese de aplicação: quando o indeferimento da tutela antecipada gerar efeitos irreversíveis ao autor, cujo direito é provável, uma vez que, desse modo, restariam violados os dispositivos constitucionais mencionados.
Trata-se, portanto, de considerar inconstitucional a norma do texto do art. 300, 3º do CPC, somente em situações bastante específicas, nas quais, mediante robusta fundamentação, justifica-se, no âmbito do controle difuso de constitucionalidade, o seu afastamento. Além disso, trata-se de situação que pode ser generalizada para casos futuros, ficando o órgão julgador vinculado a sua pretérita declaração de inconstitucionalidade diante de situações semelhantes.
*Igor Raatz é pós-doutor, doutor e mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), professor, advogado e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).
Foto reprodução tirada da inernet