1. A LEI 14.181/21 ENQUANTO POSSIBILIDADE DO MÍNIMO EXISTÊNCIAL
A entrada em vigor da Lei nº 14.181/21 trouxe ao mundo jurídico alterações expressivas em vários dispositivos legais com o objetivo de aperfeiçoar a cultura de crédito no país buscando, com isso, prevenir o superendividamento dos consumidores.
A lei altera e acrescenta normas que visam aperfeiçoar, sobretudo, o código de defesa do consumidor, atribuindo à sua principiologia conceitos como o de fomento a ações direcionadas à educação financeira dos consumidores e de prevenção ao superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor (Art. 4º, IX, X do CDC). Outro ponto que merece destaque é a inclusão da norma que proíbe o assédio aos consumidores para oferecimento de serviços de crédito, principalmente àqueles que podem ser considerados como mais vulneráveis como idosos, analfabetos, doentes ou em estado de vulnerabilidade agravada (Art. 54-C do CDC).
Vários fatores socioeconômicos levam a conclusão de que a referida alteração legislativa veio em momento oportuno. Em pesquisa realizada em junho de 2021 pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), constatou-se que cerca de 69,7% das famílias do país estão endividadas.
Segundo o estudo, o percentual de famílias com dívidas ou contas em atrasos aumentou pela segunda vez desde agosto de 2020, alcançando 25,1% em junho, acima do nível de maio. A parcelas das famílias que declararam não ter condições de pagar suas contas ou dívidas em atraso aumentou de 10,5% para 10,8% na passagem mensal. Vários fatores podem ser apontados como responsáveis por esse cenário as fragilidades na atual uberização do trabalho, a inflação mais elevada e o menor valor do auxílio emergencial para os informais passaram a ser um peso no orçamento doméstico.
É imprescindível, portanto, observar o perfil das dívidas que comprometem a renda familiar pesquisada.
A lei 14.181/21 é, assim, coerente com todo o cenário econômico que vem se desenvolvendo durante muitos anos no Brasil. Em que a oferta de crédito vinha sendo realizada de maneira desmedida, pouco cuidadosa e colocando inúmeras família em situação econômica periclitante, o que se enquadra perfeitamente a garantia fundamental prevista no Artigo 5º, inciso XXXII da Constituição Federal que impõe ao Estado a promoção, na forma da lei, da defesa do consumidor.
A defesa do consumidor como garantia fundamental do estado democrático de direito visa, sobretudo, dar concretude a outros princípios constitucionais que, dentro das relações de consumo, devem ser observados a fim de se garantir uma existência minimamente equilibrada entre consumidor e fornecedor. Voltando ao quadro anteriormente apresentado, tem-se que grande parte das dívidas é vinculada aos serviços de crédito, serviços esses oferecidos por instituições bancárias. É evidente, portanto, que no contexto de uma relação consumeristas devem haver mecanismos jurídicos validos e legítimos a equilibrar uma relação que, de um lado tem um cidadão/consumidor com poucos recursos e acesso limitado à informação, do outro lado, tem-se uma instituição financeira detentora de todo o arsenal financeiro e tecnológico para impor os seus interesses sobre esse consumidor.
A partir da concretude do direito à igualdade (artigo 5º, CF/88) e da defesa do consumidor como princípio norteador da ordem econômica e financeira (Artigo 170, V CF/88), o reconhecimento dos elementos de vulnerabilidade no mercado de consumo colocam o aperfeiçoamento das leis de defesa ao consumidor como um imperativo que deve ser constantemente observado pelo Estado. A prevenção ao superendividamento (Artigo 54-A e ss do CDC) usa para a sua definição o conceito de mínimo existencial, diretamente ligado ao estado de bem-estar social constitucional.
Art. 54-A. Este Capítulo dispõe sobre a prevenção do superendividamento da pessoa natural, sobre o crédito responsável e sobre a educação financeira do consumidor.
§ 1º Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação.
Segundo Vidal Serrano Nunes Júnior “a ideia do mínimo vital aponta que a opção de forma de organização socioeconômica pode variar, mas, qualquer que seja a opção esposada, deve ela estar comprometida, em primeiro lugar, com a preservação da dignidade material de todas as pessoas.
A Constituição brasileira hospedou claramente essa perspectiva de um standard social mínimo incondicional, revelando tal opção em várias passagens de seu texto.
Citemos, a título de exemplo, algumas das disposições constitucionais claramente orientadas nessa direção: primeiro, a indicação da cidadania como fundamento do Estado (art. 1º, III); segundo, a previsão da erradicação da pobreza e a diminuição das desigualdades sociais como objetivo do Estado (art. 3º, III); terceiro, a identificação de que nossa ordem econômica, calcada na propriedade privada e na livre iniciativa, deve ter por objetivo propiciar dignidade a todos, segundo os ditames da justiça social.” (NUNES JUNIOR, 2017)
Nota-se assim, que a nova legislação não visa dar guarida a devedores contumazes ou a quem faz dividas com a intenção dolosa de não efetivar o seu pagamento. A finalidade principal da Lei 14.181/2021 é a de resgatar ao convívio social econômico saudável, cidadãos que se encontram em uma situação de impossibilidade concreta de pagamento das dívidas diante de um quadro de superendividamento, colocados à margem de uma vida econômica digna, considerando este como o estabelecido a partir dos princípios constitucionais e consumeristas.
2. DO PROCESSO DE REPACTUAÇÃO DE DÍVIDAS
Como forma de instrumentalizar a possibilidade de conscientização, e sobretudo, de resolução para a exclusão socioeconômica causada pelo superendividamento, o código de defesa do consumidor passou a prever em seu regime jurídico a possibilidade de processo judicial no qual o consumidor superendividado possa repactuar as suas dívidas com credores. Contudo, referido processo não se opera em caráter absoluto.
Destaca-se o exposto no artigo 104-A, §1º do Código de Defesa do Consumidor:
§ 1º Excluem-se do processo de repactuação as dívidas, ainda que decorrentes de relações de consumo, oriundas de contratos celebrados dolosamente sem o propósito de realizar pagamento, bem como as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural.
É evidente que o processo de repactuação de dívidas deve ser realizado a partir da boa-fé do devedor endividado, não podendo ser utilizado como subterfúgio a devedores contumazes que buscam, na realidade, fraudar o cumprimento regular das suas obrigações contratuais, no entanto, chama a atenção a exclusão de três operações bancárias, os contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural.
A exclusão das referidas espécies contratuais no processo de repactuação de dívidas foi incluída através de emenda ao projeto de lei sob a justificativa de que “a exclusão dos referidos contratos seria necessária para preservar linhas de crédito com taxas incentivadas e que contam com subsídio público. Essas operações devem ser preservadas em sua integralidade, para propiciar a efetividade das políticas públicas”.
A justificativa parece ir de encontro a toda principiologia empregada ao regime jurídico de defesa do consumidor.
Ainda que se conheça da força contratual de contratos pactuados sob garantia real a partir de subsídios públicos, é certo que nem todos esses contratos sob garantia real se incluem nessa categoria. É o caso de contratos de financiamento comumente pactuados para aquisição de veículos.
Destaca-se para tanto que a exclusão das espécies contratuais referidas atinge diretamente, pelo menos duas espécies de dívidas que atingem diretamente os orçamentos familiares conforme estudo já citado da CNC, que são o financiamento de carro e de casa. O parágrafo primeiro do artigo 104-A do Código de Defesa do Consumidor, ao contrário de toda a evolução legislativa que busca estabelecer uma relação de igualdade entre consumidor e fornecedor, se mostra deficitário nessa missão de promoção a conciliação, uma vez que a impossibilidade de repactuação de dívidas originárias de contratos de crédito com garantia real impõe um trato de desigualdade entre o devedor e instituições bancárias uma vez que essas obrigações contratuais comprometem parte expressiva do rendimento de várias famílias.
Destaca-se ainda que o mecanismo jurídico cria uma espécie de recuperação judicial de modo que, através do pedido dirigido ao juiz, o devedor poderá apresentar um plano de repactuação de dívidas perante os credores, com prazo máximo de pagamento de cinco anos (Artigo 104 – A, CDC).
Importante ainda observar que o processo de repactuação estabelece a possibilidade de efeito suspensivo da exigibilidade dos débitos, o que poderá ocorrer pelo não comparecimento injustificado do credor em audiência de conciliação a ser designada (Art. 104-A, §2º do CDC).
Assim, o processo de repactuação de dívidas conforme estabelecido a partir do artigo 104-A do Código de Defesa do Consumidor coloca o credor como parte a qual se impõe o dever de zelo pela garantida do mínimo existencial do consumidor, sendo que, não havendo a possibilidade de conciliação deverá ser instaurado processo por superendividamento no qual o plano de pagamento de pagamento da dívida passará a ser observado de forma compulsória entre as partes.
Além de aperfeiçoar os mecanismos de proteção e defesa do consumidor, com a criação de um novo procedimento judicial de repactuação das dívidas, a Lei 14.181/21 instrumentaliza os meios de garantia fundamentais para que o Estado assegure aos seus cidadãos a possibilidade de garantia ao mínimo existencial.
Referências
Pesquisa de endividamento e inadimplência do Consumidor (Peic) – Junho de 2021. Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo. Publicado em 01 de julho de 2021. Disponível em: https://www.portaldocomercio.org.br/publicacoes/pesquisa-de-endividamento-e-inadimplencia-do-consumidor-peic-junho-de-2021/363192. Acesso em 17 de julho de 2021.
CAMPARIM, Matheus Catarino. A lei do superendividamento e a cultura do consumo (ir)responsável. Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jul-15/camparim-lei-superendividamento-consumo-irresponsavel. Acesso em: 17 de julho de 2021.
NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Direitos sociais. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/54/edicao-1/direitos-sociais. Acesso em 17 de julho de 2021.
Por Brenno de Paula Milhomem é advogado, com atuação em todo o Estado de Mato Grosso. Especialista em Direito Processual Civil. Presidente da Comissão de Direito Civil e Processo Civil da ABA-MT e membro da Comissão de Direito Bancário da ABA-MT.