Ao filósofo Epicuro é atribuída uma fala que diz o seguinte: “A morte não é nada para nós, pois, quando existimos, não existe a morte, e quando existe a morte, não existimos mais”.
E mesmo que a pessoa que faleceu não tenha organizado a sua sucessão (lembrando que hoje temos muitos mecanismos que podem ajudar no planejamento sucessório de uma família), de fato a sua ausência passa a determinar uma série de direitos, obrigações e compromissos para os familiares que irão receber o patrimônio.
Como advogada, noto que os familiares apresentam repetidas dúvidas sobre o instituto do direito real de habilitação, que é a garantia de permanência no imóvel dada ao(à) viúvo(a) ou companheiro(a). Portanto, a proposta do presente artigo é esclarecer brevemente como se aplica esse direito e quais as principais questões controvertidas sobre o tema.
O que é o Direito Real de Habitação
O Código Civil, em seu artigo 1.831, dispõe sobre o Direito Real de Habitação com a seguinte dicção: “Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.”
Ou seja, aquela pessoa que sobreviver ao falecimento do marido/esposa, independente do regime de bens do matrimônio ou da herança que vier a ser atribuída para si, terá direito de permanecer no imóvel que era utilizado para residência do casal.
Assim como outros temas relevantes que estão sendo atualmente discutidos pela doutrina e jurisprudência, é relevante a investigação da diferença dos efeitos da sucessão para cônjuges e companheiros em vista do julgamento do Tema 864 pelo Eg. Supremo Tribunal Federal, o qual afastou a diferenciação entre as famílias formadas por casamento e por união estável.
Apenas rememorando brevemente o julgado, o Eg. STF concluiu pela inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, em dispositivo que tratava dos direitos sucessórios do companheiro, determinando a equiparação sucessória entre casamento e união estável em decisão com efetivos de repercussão geral (RE 878.694/MG).
O informativo 864 da Corte apresentava o resultado do julgamento, com especial destaque a um trecho que fala sobre a equiparação dos direitos: “O Supremo Tribunal Federal (STF) afirmou que a Constituição prevê diferentes modalidades de família, além da que resulta do casamento. Entre essas modalidades, está a que deriva das uniões estáveis, seja a convencional, seja a homoafetiva. (…) O art. 1.790 do mencionado código é inconstitucional, porque viola os princípios constitucionais da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade na modalidade de proibição à proteção deficiente e da vedação ao retrocesso”.
Foi determinada a modulação dos efeitos, de forma que o entendimento passaria a ser aplicado apenas aos processos judiciais sem trânsito em julgado ou para casos em que a partilha extrajudicial ainda não tivesse sido objeto de escritura; e também é importante anotar o resultado do julgamento de Embargos de Declaração manejados pelo IBDFAM, concluído sem enfrentar o art. 1.845 e outros do CC sob o argumento que tais dispositivos não haviam sido inseridos no recurso que foi alçado à repercussão geral.
E as questões controvertidas daí extraídas são marcantes para definir como deverá ser reconhecido o direito real de habitação, pois como é bem pontuado por Flávio Tartuce: “No que concerne ao direito real de habitação do companheiro, também não mencionado nos julgamentos originais, não resta dúvida da sua existência, na linha do que vinham reconhecendo a doutrina e a jurisprudência superior, e conforme será aqui desenvolvido. Mas qual a extensão desse direito real de habitação ao companheiro? Terá o direito porque subsiste no sistema o art. 7.º, parágrafo único, da Lei 9.278/1996, na linha do último julgado? Ou lhe será reconhecido esse direito real de forma equiparada ao cônjuge, por força do art. 1.831 do Código Civil? Como veremos, os dois dispositivos têm conteúdos distintos. O Supremo Tribunal Federal não enunciou expressamente essa questão, apesar de tender à última resposta, cabendo à doutrina e à própria jurisprudência ainda resolvê-la.” Direito Civil – Direito das Sucessões – Vol. 6. São Paulo, Grupo GEN, 2021. 9788530993788. página 193.
Assim, há uma excelente oportunidade para repassar a origem histórica do instituto, sua aplicação prática, a tendência dos julgados nos Tribunais, as questões fáticas que foram postas a julgamento e, em posicionamento que poderá ser revisitado ao longo dos próximos anos, entender como a doutrina e os Tribunais sinalizam que poderá ser aplicada a previsão de proteção a princípios constitucionais como direito à moradia e da própria dignidade humana.
Breve Histórico do Direito de Habitação antes do advento do Novo Código Civil
O cônjuge viúvo passou a ser contemplado com a proteção do direito real de habitação com a edição do Estatuto da Mulher Casada. Incluído no art. 1.611, § 2º do Código Civil de 1916, o instituto vinha a assegurar ao sobrevivente do casal que o mesmo poderia permanecer no imóvel residencial, caso fosse esse o único bem dessa natureza a ser transmitido em herança.
Com bem anota Silvio Venosa, “ Não fosse esse instituto, poderiam os herdeiros não só entrar na posse direta do bem, como aliená-lo, deixando o pai ou a mãe ao desabrigo”. Salvo, V.S. D. Código Civil Interpretado, 4ª edição. São Paulo: Grupo GEN, 2019. 9788597018905. pág. 1584/1585.
O caráter protetivo da norma ganhou destaque também nos comentários do saudoso Zeno Veloso: “(…) para melhorar a situação da viúva e do viúvo, atendendo a uma aspiração generalizada no corpo social, a Lei no 4.121, de 27/08/1962 (Estatuto da Mulher Casada), acrescentou dois parágrafos ao aludido art. 1.611, prevendo a sucessão do cônjuge em usufruto e no direito real de habitação. É nítido o caráter protetivo e assistencial da inovação, merecedora dos maiores aplausos, e, no que tange à 4 sucessão usufrutuária, parece ter raiz longínqua nas Novelas 53 e 117, de Justiniano, do séc. VI de nossa Era, quando o Imperador garantiu à viúva pobre e sem dote o direito de concorrer com os herdeiros do de cujus, para o fim de ser beneficiada com uma parte do usufruto dos bens da herança (quarta uxória).” artigo publicado no III Congresso Brasileiro de Direito de Família Ouro Preto – MG – Outubro de 2001, pág. 03.
Aliás, examinar a legislação e suas alterações pode trazer grande inspiração aos operadores do Direito, que podem observar nesse único dispositivo como a lei foi se moldando ao curso da mudança dos tempos. Vejamos o histórico do art 1.611 do antigo Código Civil.
O texto dado ao caput do artigo pela redação da pela Lei nº 4.121, de 1962, chamado de Estatuto da Mulher Casada, é o seguinte: “Art. 1.611. Em falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão ao cônjuge sobrevivente, se, ao tempo da morte do outro, não estavam desquitados.”
Com a introdução do divórcio, nova redação é dada pela Lei nº 6.515, de 1977: “Art. 1.611 – A falta de descendentes ou ascendentes será deferida a sucessão ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estava dissolvida a sociedade conjugal.”
Os dois parágrafos abaixo reproduzidos são de 1962, editados sob a presidência da Ditadura Militar (presidência de João Goulart), mas de grande avanço histórico pois foi por meio desse instituto que eliminou-se a incapacidade relativa da mulher casada, passando a prever a colaboração da mulher na chefia da sociedade conjugal (“Reflexões sobre a igualdade de gênero no processo civil”, artigo publicado pela Ministra Nancy Andrighi e pelo advogado Marcelo Mazzola publicado no portal Migalhas em 1/10/2019):
“§ 1º O cônjuge viúvo se o regime de bens do casamento não era o da comunhão universal, terá direito, enquanto durar a viuvez, ao usufruto da quarta parte dos bens do cônjuge falecido, se houver filho dêste ou do casal, e à metade se não houver filhos embora sobrevivam ascendentes do ‘de cujus’.
§ 2º Ao cônjuge sobrevivente, casado sob o regime da comunhão universal, enquanto viver e permanecer viúvo será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habilitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único bem daquela natureza a inventariar.”
Em 2000, refletindo discussões sobre a necessidade de proteção das pessoas com deficiência, o artigo recebeu um novo parágrafo por meio da Lei nº 10.050:
“§ 3o Na falta do pai ou da mãe, estende-se o benefício previsto no § 2o ao filho portador de deficiência que o impossibilite para o trabalho.”
O Estatuto da Pessoa com Deficiência somente seria editado em 6 de julho de 2.015, mas a extensão do benefício do direito real de habitação a filho que apresente condição especial 15 anos antes, para alcançar uma proteção que, em última análise, visa promover a participação na sociedade em condições de igualdade com as demais pessoas, também demonstra o quanto esse instituto de natureza real pode, em muitos aspectos, ter sido grande pioneiro na discussão e proteção de pessoas menos favorecidas e mais vulneráveis nas relações familiares, especialmente quando é aberta a sucessão.
Isso porque, ainda que a configuração das famílias hoje seja grandemente vista sob o ponto de vista do afeto (Maria Berenice Dias, Manual do Direito das Famílias, 14ª edição, Salvador, Editora JusPodivm, pág. 12), também são as mágoas que interferem nas boas decisões de solução amigável para findar uma partilha, ainda mais quando a sucessão é aberta e os filhos que são herdeiros não nasceram daquele casamento. Em experiência prática, observei raras situações em que os filhos do autor da herança manifestaram apreço ou reconhecimento à proteção da companheira, ainda mais quando a união estável vinha de uma relação construída na maturidade e após o óbito da mãe daqueles filhos.
Aliás, Zeno Veloso já preconizava em 2001 que: “Esta emenda, singelamente, quer fazer justiça aos brasileiros e brasileiras que constituem famílias respeitáveis e dignas, com base nos laços da afetividade, da compreensão, da solidariedade, da lealdade, da mútua assistência moral e material, formando uniões estáveis que merecem o mesmo tratamento dispensado às famílias fundadas no casamento.” (ob. cit., pág. 24).
Por fim, ainda quanto ao levantamento de histórico, Silvio Venosa comenta que alteração trazido pela Lei do Divórcio impôs o regime da comunhão de aquestos na ausência de pacto antenupcial, levando os Tribunais a uma tendência que, “mesmo sob esse regime legal de comunhão de aquestos imperava o direito real de habitação. O presente Código absorveu essa ideia e especificou que o direito real de habitação tem aplicação ‘qualquer que seja o regime de bens’” Por fim, o autor conclui que “sem dúvida, essa posição é mais justa.” (ob. cit., pág. 1584/1585.
Direito de Habitação em legislação posterior ao Novo Código Civil
Além do Estatuto da Pessoa com Deficiência, cuja proteção foi antecipada ao nCC como brevemente comentada na alteração que foi incorporada pela Lei 10.050/2000, também tem sido invocado o Estatuto do Idoso para, em alguns casos, promover a proteção do Direito Real de Habitação a pessoas que são vulneráveis e estão amparadas pela Lei 10.741/2003. Vejamos a decisão do Eg. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:
“(…) Analisando os autos, restou comprovado que, na ação movida pelo Ministério Público para defesa de direito de idoso em situação de risco (sentença acostada), o Réu (ex-esposo da filha da Recorrente) detém o direito real de habitação do imóvel sub judice – O direito real de habitação, previsto no art. 1.831 do Código Civil , torna inútil a discussão acerca da propriedade do imóvel – Desse modo, o Apelado é quem detém a posse legítima do bem descrito na inicial, tendo o direito de usufruir do imóvel que servia de residência ao casal, independentemente de ser ou não proprietário do mesmo” (TJRJ – Ap 0006130-68.2010.8.19.0028, 9-2-2017, Relª Maria Regina Fonseca Nova Alves). – citado por Silvio Venosa, ob. cit., pág. 1.014.
Portanto, a legislação vem sendo interpretada para, sempre que possível, ampliar a proteção a pessoas em situação mais vulnerável.
Registro do Direito Real na Matrícula do Imóvel
O Direito Real de Habitação deve ser apontado em partilha e, ainda, levado a registro na matrícula do imóvel. A autorização para registro está disposta no Art. 167, I, item 7, da Lei de Registros Públicos:
“Art. 167. No Registro de imóveis, além da matrícula, serão feitos:
I – o registro:
(…)
7) do usufruto e do uso sobre imóveis e da habitação, quando não resultarem do direito de família”.
E diante da sua natureza como direito real, será eficaz com a anotação em matrícula. Assim comenta Silvio Venosa: “Salvo o direito real de habitação que surge com a abertura da sucessão, embora passível de registro do respectivo formal de partilha para eficácia erga omnes, o direito de habitação somente se torna direito real com o registro imobiliário. Enquanto não registrado, existe mera relação pessoal ou obrigacional entre instituidor e instituído, sem eficácia real.” (ob. cit. pág. 1.239).
Entretanto, esse registro não é obrigatório e, na prática, são comuns os casos em que não há apontamento na matrícula, o que pode inclusive levar à prejuízo de terceiros que eventualmente venham a negociar a compra do referido bem.
Mas a falta de registro não é impedimento para que sejam produzidos efeitos, como já decidiu o Eg. Superior Tribunal de Justiça no REsp 565.820/PR.
A mesma diretriz foi reafirmada recentemente pelo Eg. STJ no REsp 1.846.167 – SP, relatado pela Ministra Nancy Andrighi e citado de forma mais completa ao final do presente estudo. Apenas para ilustrar a dispensabilidade do registro, destaca-se novamente a passagem do voto: “XIV. Sabidamente, no direito das sucessões, o direito real de habitação é ex lege, ou seja, emana diretamente da lei (art. 1.831 do CC/2015 e art. 7º da Lei 9.272). Devido à sua natureza, esta Corte já decidiu que, para produzir efeitos, é desnecessária a inscrição no cartório de registro de imóveis”.
Em relação ao valor a ser atribuído em base de cálculo, interessante é o parecer dado pela Corregedoria Geral de Justiça (processo 0011489-19.2019.8.26.0309), que sugere atribuição de 1/3 do valor do imóvel usando a mesma referência do usufruto (parecer de 2020, publicado no site da CNBSP.
Ampliação do Benefício para Sucessão em convivência por União Estável
Como apresentado na introdução do presente artigo, há uma tendência da aplicação do Direito Real de Habitação para proteção do companheiro que vive em união estável, quando do falecimento do proprietário do bem. A Lei nº 9.278/1996, no parágrafo único do art. 7º dispôs: “Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver e não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família.”
Ainda que a doutrina trave alguma discussão a respeito, a jurisprudência tem reconhecido a extensão do benefício. Reforçando esse posicionamento, temos o Enunciado 117 do CJF (Conselho da Justiça Federal): “o direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não ter sido revogada a previsão da Lei n. 9.278/96, seja em razão da interpretação analógica do art. 1.831, informado pelo art. 6.º, caput, da CF/88”.
A recomendação é amparada em precedentes dos Tribunais de Justiça de Minas Gerais e de São Paulo:
“Apelação. Ação de indenização conexa com imissão de posse. Impropriedade da via eleita. Inocorrência. União estável. Companheiro falecido. Indenização por serviços prestados. Impossibilidade. Direito real de habitação à companheira. Artigos 1.831 do NCCB e art. 7.º da Lei 9.278/96. Requisitos legais. Presença. Reconhecimento. Por se tratar de relação de afinidade e afeição, não há falar em verba indenizatória à companheira pelos serviços prestados na constância da união. É viável o manejo de ação de imissão de posse quando o herdeiro do imóvel pretende ver-se integrado em sua posse decorrente da sucessão, não havendo falar em impropriedade do procedimento adotado. Presentes os requisitos legais previstos nos artigos 1.831 do Código Civil e 7.º da Lei 9.278/96, deve ser garantido à companheira sobrevivente o direito real de habitação, ainda que esta não tenha contribuído para a aquisição do único bem imóvel do casal” (TJ-MG – Apelação Cível 1.0775.04.001586-6/001 – Comarca de Coração de Jesus – Apelante(s): M.C.J.S. – Apelado(a)(s): C.B.S. I.A.J.B.B.C.5. – Rel. Des. Dídimo Inocêncio de Paula, j. 30.10.2007, publicado em 04.12.2007).
“União estável. Configuração. Partilha de bens do casal. Bem imóvel adquirido na constância da união. Ausência de elementos seguros de que o fora com rendimentos e bens pertencentes exclusivamente à falecida. Réu que tem direito à metade do imóvel em questão. Direito real de habitação. Preenchimento dos requisitos previstos no art. 7.º, parágrafo único, da Lei n. 9.278/96. Recurso do réu reconvinte provido, desprovido o da autora reconvinda” (TJ-SP, Apelação 994.03.056850-0, 1.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Luiz Antônio de Godoy, j. 02.02.2010).
Obrigações decorrentes do Direito Real de Habitação
Mas se o exercício do direito real é reconhecido, não se pode negar que tem ganhado corpo a discussão sobre as obrigações daí decorrentes e outras preocupações correlatas.
Para Silvio Venosa, “mais útil, em tese, do que o simples uso, o direito de habitação serve para proteger vitaliciamente alguém, provendo-o de um teto para morada. O habitador deve cuidar da coisa da mesma forma que no usufruto, pois terá que restituí-la. O direito de habitação, que admite em tese certo cometimento, não pode ser alargado a ponto de tornar o local comercial ou industrial.” (ob. cit., pág. 1.238).
Interessante o apontamento de Arnaldo Rizzardo: “O fato de o prédio destinar-se unicamente à moradia não impede que o habitador exerça atividades mais amplas compatíveis com o direito de residência, como atividade de consultas de profissionais liberais, pequeno comércio e prestação de serviços (RIZZARDO, 1991, p. 1095)” apud Silvio Venosa, ob. cit., pág. 1.239.
Mas definitivamente, não se admite que o imóvel seja cedido para terceiros, que seja locado ou, ainda, que o direito real seja mantido caso o beneficiário venha a contrair matrimônio ou união estável.
E tal como usufruto, será um direito real de natureza temporária, tendo por limite máximo a vida do habitador; é vitalício, mas temporário como é a brevidade da vida.
Exceções previstas ao Direito Real de Habitação
Seguindo as diretrizes que limitam o direito real de habitação, temos algumas ocorrências que são mais comuns e foram objeto de decisão da jurisprudência.
É vedado o benefício do direito real de habilitação no caso de pluralidade de imóveis com natureza residencial (TJMG – Acórdão: Agravo de Instrumento nº 1.0145.08.499250-5/001). E quando o imóvel tem proprietários em condomínio, os Tribunais afastam o direito real de habitação, sendo interessante destacar o entendimento do ministro Luis Felipe Salomão, que, em caso previamente julgado, ressaltou que “o direito real à habitação limita os direitos de propriedade, porém, quem deve suportar tal limitação são os herdeiros do de cujus, e não quem já era proprietário do imóvel antes do óbito”. Para a ministra relatora, Isabel Gallotti, entendimento diverso possibilitaria, inclusive, a instituição de direito real de habitação sobre imóvel de propriedade de terceiros estranhos à sucessão, o que seria contrário à finalidade da lei:
“EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. RECURSO ESPECIAL. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. COPROPRIEDADE DE TERCEIRO ANTERIOR À ABERTURA DA SUCESSÃO. TÍTULO AQUISITIVO ESTRANHO À RELAÇÃO HEREDITÁRIA. 1. O direito real de habitação possui como finalidade precípua garantir o direito à moradia ao cônjuge/companheiro supérstite, preservando o imóvel que era destinado à residência do casal, restringindo temporariamente os direitos de propriedade originados da transmissão da herança em prol da solidariedade familiar.
2. A copropriedade anterior à abertura da sucessão impede o reconhecimento do direito real de habitação, visto que de titularidade comum a terceiros estranhos à relação sucessória que ampararia o pretendido direito.
3. Embargos de divergência não providos.” (EREsp 1520294/SP, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 26/08/2020, DJe 02/09/2020). www.stj.jus.br
Vedação de aluguel ou empréstimo, conforme entendimento da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que negou provimento ao recurso de uma pessoa que, alegando não dispor de meios para manter um imóvel de luxo localizado em área nobre, havia celebrado contrato de comodato com terceiro após o falecimento de seu companheiro.
“CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INVENTÁRIO. OMISSÃO E OBSCURIDADE.
INOCORRÊNCIA. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. COMPANHEIRO SOBREVIVENTE.
APLICAÇÃO DOS MESMOS DIREITOS E DOS MESMOS DEVERES ATRIBUÍDOS AO CÔNJUGE SOBREVIVENTE. CELEBRAÇÃO DE CONTRATO DE LOCAÇÃO OU COMODATO DO IMÓVEL OBJETO DO DIREITO DE USO. IMPOSSIBILIDADE. CONSTATAÇÃO, ADEMAIS, DE QUE A TITULAR DO DIREITO NÃO RESIDE NO LOCAL. ANALOGIA ENTRE O DIREITO REAL DE HABITAÇÃO E O BEM DE FAMÍLIA. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211/STJ. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL.
PREMISSAS FÁTICAS DISTINTAS.
1- Ação distribuída em 28/04/2006. Recurso especial interposto em 29/05/2013 e atribuído à Relatora em 25/08/2016.
2- O propósito recursal consiste em definir, para além da alegada negativa de prestação jurisdicional, se é admissível que o companheiro sobrevivente e titular do direito real de habitação celebre contrato de comodato com terceiro.
3- Não há violação ao art. 535, I e II, do CPC/73, quando se verifica que o acórdão recorrido se pronunciou precisamente sobre as questões suscitadas pela parte.
4- A interpretação sistemática do art. 7º, parágrafo único, da Lei nº 9.278/96, em sintonia com as regras do CC/1916 que regem a concessão do direito real de habitação, conduzem à conclusão de que ao companheiro sobrevivente é igualmente vedada a celebração de contrato de locação ou de comodato, não havendo justificativa teórica para, nesse particular, estabelecer-se distinção em relação à disciplina do direito real de habitação a que faz jus o cônjuge sobrevivente, especialmente quando o acórdão recorrido, soberano no exame dos fatos, concluiu inexistir prova de que a titular do direito ainda reside no imóvel que serviu de moradia com o companheiro falecido.
5- Não se admite o recurso especial quando a questão que se pretende ver examinada – analogia do direito real de habitação em relação ao bem de família – não foi suscitada e decidida pelo acórdão recorrido, nem tampouco foi suscitada em embargos de declaração.
Súmula 211/STJ.
6- A dessemelhança fática entre os paradigmas e o acórdão recorrido impedem o conhecimento do recurso especial pela divergência jurisprudencial.
7- Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, desprovido.” (REsp 1654060/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/10/2018, DJe 04/10/2018). www.stj.jus.br
Por fim, merece destaque o boletim especial publicado em 27/06/21 pelo Eg. STJ, angariando diversos precedentes sobre o tema e organizando o conteúdo dos julgados de forma didática, inclusive para pessoas leigas ou jovens operadores do Direito.
Dentre as decisões apontadas, merece especial destaque o REsp 1.846.167 – SP, relatado pela Ministra Nancy Andrighi. Nesse julgamento, é traçado um breve panorama sobre a natureza, origem e finalidade do instituto, o qual merece transcrição pela sua riqueza de detalhes:
“III.I. Natureza, origem e finalidade
XIV. Sabidamente, no direito das sucessões, o direito real de habitação é ex lege, ou seja, emana diretamente da lei (art. 1.831 do CC/2015 e art. 7º da Lei 9.272). Devido à sua natureza, esta Corte já decidiu que, para produzir efeitos, é desnecessária a inscrição no cartório de registro de imóveis (REsp 565.820/PR, Terceira Turma, DJ 14/03/2005; REsp 282.716/SP, Terceira Turma, DJ 10/04/2006). XV. Esse direito está ‘calcado nos princípios da solidariedade e da mútua assistência, ínsitos ao relacionamento estável na concretização de uma família’ (NETO, Rénan Kfuri. Renúncia ao direito real de habitação na união estável. In: ADV Advocacia Dinâmica: Seleções Jurídicas 12/18). Há quem afirme Documento: 2018697 – Inteiro Teor do Acórdão – Site certificado – DJe: 11/02/2021 Página 11 de 5 Superior Tribunal de Justiça que ‘o direito real de habitação, em especial relacionada ao direito de família, representa uma forma de concretização da dignidade da pessoa humana’ (XAVIER, José Tadeu Neves. O direito real de habitação na sucessão do companheiro. In: Revista de Direito Privado. Vol. 15, n. 59, jul./set 2014, fl. 279). XVI. O direito real de habitação detido pelo cônjuge ou companheiro também é vitalício e personalíssimo, o que significa que ele pode permanecer no imóvel até o momento do falecimento. Sua finalidade é assegurar que o viúvo ou viúva permaneça no local em que antes residia com sua família, garantindo-lhe uma moradia digna. Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, ao tratar do tema, esclarecem que: A finalidade deste legado ex lege de habitação é dúplice: garantir certa qualidade de vida ao cônjuge supérstite e impedir que após o óbito do outro cônjuge seja ele excluído do imóvel em que o casal residia, sendo ele o único bem residencial do casal a ser inventariado. Com efeito, se os filhos do falecido e o cônjuge sobrevivente não se entendessem, poderia a qualquer tempo ser extinto o condomínio, com a perda da posse. Com o direito real de habitação, embora partilhado o imóvel entre os herdeiros, o cônjuge reserva para si o direito gratuito de moradia, independente da existência de testamento a seu favor. (CHAVES DE FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. 9ª ed. Bahia: Juspodivm, 2013, pp. 856-858)
XVII. Esta Corte, inclusive, já se manifestou no sentido de que esse direito ‘deve ser conferido ao cônjuge/companheiro sobrevivente não apenas quando houver descendentes comuns, mas também quando concorrem filhos exclusivos do de cujus’ (REsp 1134387/SP, Terceira Turma, DJe 29/05/2013).
XVIII. Com o advento do Código Civil de 2002, surgiu a discussão acerca da subsistência do direito real de habitação ao companheiro sobrevivente. XIX. Isso porque, a sucessão do companheiro foi inserida no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Lei 8.971/1994. Ao depois, foi editada a Lei 9.278/1996, a qual consagrou o direito real de habitação ao convivente Documento: 2018697 – Inteiro Teor do Acórdão – Site certificado – DJe: 11/02/2021 Página 12 de 5 Superior Tribunal de Justiça supérstite ‘enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família’. O Código Civil de 2002, por sua vez, apenas previu tal direito ao cônjuge sobrevivente (art. 1.831), nada dispondo sobre sua aplicação ao companheiro. XX. Tanto na doutrina, quanto na jurisprudência, instaurou-se acirrado debate sobre a revogação ou não da Lei 9.278/96 pelo CC/02. Essa questão chegou a este Tribunal Superior, que firmou orientação pela preservação do referido diploma legislativo e, consequentemente, pela manutenção do direito real de habitação ao companheiro supérstite. A propósito, cite-se os seguintes precedentes: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. INEXISTÊNCIA. JULGAMENTO ‘EXTRA PETITA’. NÃO OCORRÊNCIA. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. COMPANHEIRO. POSSIBILIDADE. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO NÃO RECONHECIDO NO CASO CONCRETO. 1. Inexistência de ofensa ao art. 535 do CPC, quando o acórdão recorrido, ainda que de forma sucinta, aprecia com clareza as questões essenciais ao julgamento da lide. 2. Inexiste julgamento ‘extra petita’ quando o órgão julgador não violou os limites objetivos da pretensão, tampouco concedeu providência jurisdicional diversa do pedido formulado na inicial. 3. O Código Civil de 2002 não revogou as disposições constantes da Lei n.º 9.278/96, subsistindo a norma que confere o direito real de habitação ao companheiro sobrevivente diante da omissão do Código Civil em disciplinar tal matéria em relação aos conviventes em união estável, consoante o princípio da especialidade. 4. Peculiaridade do caso, pois a companheira falecida já não era mais proprietária exclusiva do imóvel residencial em razão da anterior partilha do bem. 5. Correta a decisão concessiva da reintegração de posse em favor das co-proprietárias. 6. Precedentes específicos do STJ. 7. Não apresentação pela parte agravante de argumentos novos capazes de infirmar os fundamentos que alicerçaram a decisão agravada. 8. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. (AgRg no REsp 1436350/RS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/04/2016, DJe 19/04/2016 – grifou-se) DIREITO CIVIL. SUCESSÃO. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. COMPANHEIRO SOBREVIVENTE. POSSIBILIDADE. VIGÊNCIA DO ART. 7° DA LEI N. 9.278/96. Documento: 2018697 – Inteiro Teor do Acórdão – Site certificado – DJe: 11/02/2021 Página 13 de 5 Superior Tribunal de Justiça RECURSO IMPROVIDO. 1. Direito real de habitação. Aplicação ao companheiro sobrevivente. Ausência de disciplina no Código Civil. Silêncio não eloquente. Princípio da especialidade. Vigência do art. 7° da Lei n. 9.278/96. Precedente: REsp n. 1.220.838/PR, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/06/2012, DJe 27/06/2012. 2. O instituto do direito real de habitação possui por escopo garantir o direito fundamental à moradia constitucionalmente protegido (art. 6º, caput, da CRFB). Observância, ademais, ao postulado da dignidade da pessoa humana (art. art. 1º, III, da CRFB). 3. A disciplina geral promovida pelo Código Civil acerca do regime sucessório dos companheiros não revogou as disposições constantes da Lei 9.278/96 nas questões em que verificada a compatibilidade. A legislação especial, ao conferir direito real de habitação ao companheiro sobrevivente, subsiste diante da omissão do Código Civil em disciplinar tal direito àqueles que convivem em união estável. Prevalência do princípio da especialidade. 4. Recurso improvido. (REsp 1156744/MG, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 09/10/2012, DJe 18/10/2012 – grifou-se) XXI. Portanto, não remanescem dúvidas de que é garantido ao companheiro supérstite o direito real de habitação sobre o imóvel no qual residia com o de cujus.” www.stj.jus.br, disponível em https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=2018697&num_registro=201903262108&data=20210211&peticao_numero=-1&formato=PDF e consultado em 27/6/21.
Conclusão
O direito real de habitação vem sendo garantido aos cônjuges e aos conviventes em união estável, desde que não seja caracterizada exceção dentro das hipóteses examinadas no presente instrumento. E mesmo na falta de apontamento do direito na matrícula do imóvel, o direito poderá ser invocado, devendo ser observado pelos herdeiros e também por terceiros, por exemplo eventuais interessados na aquisição de imóvel que seja objeto de inventário.
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Por Juliana Chinem, advogada responsável pela gestão do escritório Bernardi & Schnapp Advogados, com experiência em Mediação, Negociação de Acordo e atuação nas áreas do Direito Cível, Consumidor e Família. Especialização pela PUC/SP, MBA pela Anhembi Morumbi, pós graduação pela FGV/SP. Secretaria Geral da Comissão Nacional de Gestão Jurídica da ABA – Associação Brasileira de Advogados. Membro da Comissão de Coaching Jurídico da OAB/SP e Diretora Adjunta da Comissão de Gestão de Escritórios da OAB Jabaquara. Autora do livro “Coaching de Oratória” em 2ª edição pela Ed. Matrix e coautora dos livros “Histórias Inspiradoras para Mulheres que desejam se Reinventar” pela Ed. Mulheres que Decidem e “Liberte seu Poder 360º” pela Ed. Leader. Palestrante em eventos da OAB, Fenalaw e Seminários da área Jurídica. Ex-instrutora da Oficina de Oratória da OAB/SP Central.