CYBERTRAIÇÃO E O DEVER DE INDENIZAR

Introdução

Este artigo tem como objetivo apresentar o tema cybertraição, sua repercussão na possibilidade de indenizar o cônjuge ou companheiro traído e se há ou não culpa atribuída aquele infiel na dissolução da união estável e no divórcio. É possível falar de amante virtual? Há quebra dos direitos e deveres dos cônjuges ou companheiros?

A internet e os relacionamentos

A infidelidade sempre existiu na trajetória da humanidade. Ao traidor, no passado, era atribuída culpa pelo fim do relacionamento, como previa o art.317, do Código Civil de 1916, quando falava que a ação de desquite só poderia se fundar nos motivos ali elencados e, dentre eles, o adultério. Previsão extinta ao longo dos anos, corroborando para tal, em 2005, a revogação do art.240, do Código Penal, que previa a pena atribuída ao crime de adultério.

A rede mundial de computadores fez surgir a queda nas fronteiras. Pudemos observar mais de perto esse fato ao longo do ano de 2020, quando foi declarada a pandemia mundial causada pelo Coronavírus. As distâncias se encurtaram com a possibilidade de comunicação através do virtual, seja por vídeo chamadas ou por mensagens através dos vários aplicativos destinados a este fim. A internet, que já era o meio mais eficaz, muitas vezes, de comunicação, foi se aperfeiçoando ao longo dos anos. A comunicação virtual tornou-se um convite a nova forma de socialização [1].

Por ser algo onde há a necessidade apenas de um computador, tablete, celular, o meio virtual tornou-se espaço para toca de confidências e intimidades, sem necessitar do olho no olho com o outro interlocutor. Muitos se sentem mais à vontade, inclusive, assim. Além disso, após a conversa, a mesma poderá ser apagada sem deixar, aparentemente, qualquer rastro.

Cybertraição

            Sinais de cybertraição foram citados como razão para um terço das cinco mil separações analisadas em uma pesquisa feita no Reino Unido em 2011. E o vilão do estudo é o Facebook.[2]. A rede possibilita romper limites naturais/reais de outrora. [3]

            Como citado anteriormente, a internet motivou muitas pessoas a se abrirem com o outro interlocutor, contando suas angustias, receios, desejos, motivando, assim, o relacionamento virtual.

            Conforme a Constituição Federal, os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo casal, conforme art.226, §5º [4]. Os deveres conjugais estão descritos no art.1.566 do Código Civil, e no inciso I, há a previsão de fidelidade recíproca. Da mesma forma, os deveres da união estável estão previstos no art.1.724, cabendo aos companheiros reciprocamente o dever de lealdade. E a lealdade nada mais é do que a fidelidade aos compromissos assumidos.

            Segundo Clóvis Bevilaqua, o referido dever de fidelidade é a expressão da monogamia, não constituindo tão somente um dever moral, sendo exigido pelo direito em nome dos superiores interesses da sociedade[5]. 

            Vale frisar, aqui, que a bigamia ainda é crime no Brasil, segundo norma contida no art.250 do Código Penal, corroborando o art.1.521, inciso V, do Código Civil, que proíbe aos casados se casarem sem estarem divorciados.

Ocorre que para a cybertraição, não há qualquer impeditivo legal, tendo em vista que o ato de trair ao outro em si não gera bigamia, por exemplo, mas será que o inadimplemento dos deveres matrimoniais previstos no art.1.566 e dos deveres da relação de companheiros previstos no art.1.724, todos os Código Civil, pode gerar o dever de indenizar por danos morais ao traído?

Reponsabilidade civil e a infidelidade

            A culpa pelo fim do matrimônio foi extinta quando da entrada em vigor da Emenda Constitucional 66/2010 que deu nova redação ao art.226, §6º da Constituição, admitindo o divórcio direto, sem qualquer imposição de lapso temporal ou discussão sobre culpa.

            Ocorre que a quebra dos deveres matrimoniais vem sendo considerada como violação à boa-fé objetiva, lesando a legítima confiança que um deposita no outro, sendo esse o fundamento invocado nas ações de indenizações por danos morais [6]. A esfera para discussão é a cível, tendo em vista que, como ventilado, não há discussão sobre culpa na esfera familiar.

            À luz do art.186, do Código Civil, pode-se observar elementos geradores do dever de indenizar, quais sejam, a comprovação de existência do dano, o nexo de causalidade entre o fato e o dano e a consequente culpa do agente. Sendo assim, o simples rompimento de uma relação amorosa, mesmo que através de uma traição, por si só, não ensejaria o dever de indenizar. Necessário se faz a configuração de um dos cônjuges ou companheiros ter submetido o outro a condições vexatórias e humilhantes, vindo a ofender sua honra, imagem integridade física ou psíquica.

            Pela questão da preservação da intimidade de cada um, da dignidade e do sigilo das comunicações, princípios garantidos pela nossa Constituição, pode haver o complicador na questão probatória das cybertraições, tornando a prova obtida como conteúdo ilícito. Sendo assim, no caso concreto, esse conteúdo probatório será analisado, sobretudo quando há questões sensíveis como as que envolvem o Direito das Famílias, trazendo a mitigação aos princípios constitucionais citados.

            Segundo o Superior Tribunal de Justiça, a prática de adultério, isoladamente, não se mostra suficiente a gerar um dano moral indenizável, sendo necessário que a postura do cônjuge infiel seja ostentada de forma pública, comprometendo a reputação, a imagem e a dignidade do companheiro (STJ. AREsp 1176712 de 26.10.2017).

            Seguindo esse entendimento, o STJ vem firmando posicionamento no sentido de que a mera frustração e mágoa, sentimentos experimentos no final de um relacionamento, não são capazes de comprovar e gerar o dever de indenização (STJ. AREsp 1116006 de 13.11.2017).

            Vale aqui o destaque aos ensinamentos de Maria Berenice Dias ao defender a inexistência do dever de indenizar a simples infidelidade virtual. Vejamos:

Quem é o infrator? O que se relacionou amorosamente pela internet ou aquele que despreza o outro e mantém apenas uma aparência de casamento? Não cabe nominar de descumprimento do dever de fidelidade quando não existe afronta ao dever de respeito que deve reger as relações interpessoais. Ora, não há como falar em traição quando alguém se relaciona com outro exclusivamente por meio de trocas virtuais. Não se pode confundir o mero ciúme do cônjuge, que se considera preterido pelo momento prazeroso desfrutado pelo parceiro, com infidelidade ou adultério. Descabe considerar algum culpado por fazer uso de um espaço imaginário e se relacionar com uma pessoa “invisível”[7].

            Assim sendo, o caso concreto deverá ser analisado para que os elementos caracterizadores do dano, contidos no art.186, do Código Civil, sejam ou não identificados para que a culpa seja atribuída ao dever de um indenizar ao outro a traição praticada.

Conclusão

O fim de um relacionamento causa, por obvio, a sensação de fracasso. Procurar culpados pelo final parece condição sine qua non para a existência e justificativa do final. Não há negativa de quem a traição traz dissabores, mágoas e mais frustrações. A cybertraição, por não trazer necessariamente o encontro presencial, carrega por si só uma sensação de que o real não basta, o companheirismo diário não faz aquela pessoa permanecer naquele relacionamento, fazendo com que ela procure, através da tela do computador, do celular, afago nos “braços” de um outro alguém.

            Como disse o poeta Vinícius de Moraes, no Soneto da Fidelidade: “De tudo, ao meu amor serei atento antes e com tal zelo, e sempre, e tanto, que mesmo em face do maior encanto dele se encante mais meu pensamento (…) Eu possa lhe dizer do amor (que tive) que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”[8]. Nem todos os amores terminam como se deseja. Mas o respeito, o compromisso e a amizade, esses sim, que deveriam ser eternos, deveriam, também, ser preservados. A dor pelo fim um dia passa. A forma vexatória e humilhante pela forma do fim que, por vezes, pode não passar.

            A busca pela reparação de um dano moral sofrido durante o relacionamento deve ser a razão em seu próprio fim e não ser um meio de vingança ao outro, postergando o sofrimento em longos anos de batalha judicial que poderá, inclusive, respingar e ferir os filhos, fruto daquela união.

Referências

[1] GUIMARÃES, Marilene Silveira. Adultério virtual, infidelidade virtual. In: A família na travessia do milênio. Belo Horizonte: IBDFAM: OAB-MG: Del Rey, 2000. p. 442.

[2] Revista Isto É. Infidelidade na Internet. Disponível em: > https://istoe.com.br/191181_INFIDELIDADE+NA+INTERNET<. Acesso em: 13 jun. 2021.

[3] ROSA. Alexandre Moraes da. Amante Virtual: (In) consequências no Direito de Família e Penal. Florianópolis: Habitus, 2001. p. 22

[4] Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. BRASIL. Constituição (1988). Constituição [da] Republica Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal.

[5] BEVILAQUA. Clóvis. Código Civil Comentado. São Paulo: Saraiva. p. 110.

[6] DIAS. Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 174.

[7] DIAS. Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 177.

[8] MORAES, Vinícius. Soneto da Fidelidade. Disponível em https://www.letras.mus.br/blog/soneto-de-fidelidade-interpretacao/#:~:text=O%20Soneto%20de%20Fidelidade%20foi,de%20O%20Encontro%20do%20Cotidiano). Acesso em 14 de jun. 2021.

Por Quezia Goulart. Presidente da Comissão de Direito das Famílias e Sucessões da Associação de Advogados do Brasil (ABA/RJ). Advogada atuante nas áreas das Famílias e Sucessões e Conciliadora no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Mediadora pelo CASA – Centro de Atendimento de Soluções Alternativas.  Associada ao IBDFAM e IBPC. Pós-Graduada em Direito Civil pela Anhanguera. Especialista em Processo Civil pela PUC/RJ. Pós-Graduada em Direito de Família e Sucessões pela Fundação do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Capacitada em Testamento Vital. Instagram @topicofamiliar. Cofundadora do @nitjur 

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